João
Kennedy de Sá Passos*
O escritor Gilberto Freyre, em seu livro “Insurgências e ressurgências atuais”,
vaticina na introdução um começo discreto de ressurgências culturais não
ocidentais antieuropeias que tocam uma cultura “transnacional” titulada de
“eurotropical”. Para ele, essas culturas que sofreram com o imperialismo
europeu retomam as suas histórias particulares e ressurgem com novos aspectos
que causam espanto por exporem os contrários entre grupos, mas que também podem
significar importantes ocasiões de cooperações entre elas. Uma referência
importante sobre o tema é o livro “Aventura
e rotina”, que numa nova edição desperta a “imaginação sociológica” que é
atualizada com o livro “Insurgências e
ressurgências atuais”. É possível observar esses processos na resposta
islâmica ao primado cultural ocidental. A não aceitação da soberania do outro
sobre si desperta um julgamento a favor ou contra as ressurgências, ao passo
que uns as entendem como “tendências ou revoltas” e outros como “inquietações,
revisões”.
Sociológica e antropologicamente, analistas reconhecem as
problemáticas nacionais (etnocêntricas) que movem a motivação “não-racional”
das culturas que não são ocidentais e são ressurgentes. A falta de espaço para
troca de valores éticos, por exemplo, pela dominação, passa a não existir mais
e assim surge uma oportunidade para as culturas que estavam sob o imperialismo
ocidental de terceiras culturas se mostrarem autênticas. Retomando o islamismo,
assinala o autor, o perigo das polarizações etnocêntricas que podem acabar se
tornando explosivamente violentas, e segue tomando como referências
pré-ressurgentes os movimentos brasileiros em Canudos (BA) e o dos Muckers
(RS), ou ainda as missões jesuítas pelas Américas. A força que é impressa sobre
as culturas não européias é imposta de modo diverso: “em certos casos”
observa-se ou a ação “cristianizante” (no sentido sociológico) ou até mesmo
“confraternizante”, resultando numa mistura cultural. Desse modo fica
compreensível a iniciativa e o conteúdo moral, ético e religioso das culturas
ressurgentes, como revanche a racionalismos e apatias míticas e místicas.
A colonização é rejeitada, partindo desse ponto de vista,
porque segrega as culturas e etnias que se relacionam num mesmo lugar, para
alimentar o entendimento ético superior que as culturas ocidentais têm de si
mesmas e essas ostentam, paradoxalmente, o adjetivo “racionalistas”. Nos
contatos entre europeu, não europeu e não cristão, percebe-se também uma
relativização que começa no âmbito religioso e escapa para outros campos das
relações que antropologicamente se definem como “respeito”, tornando os valores
“transculturais”. Todo esse processo cria, segundo Gilberto Freyre, uma nova
forma de conceito sobre o que é racional ou irracional, ratificando as
reflexões de Durkheim. O autor ainda apresenta “restrições sócio-culturais”
tanto quanto restrições “psicossociais” que variam em relação aos fatores funcionais
e econômicos na sociedade. Foi das ressurgências culturais (sutis) na parte
oriental do planeta e no continente africano, descritas no livro “Aventura e rotina”, que surge para o
livro o nome “Insurgências e
ressurgências atuais”, e assim retrata-se uma nova observação desses
fenômenos intuitivos e valorativos que pretende buscar fazer uma aproximação
comparativa com os mesmos processos no Brasil. Neste ponto, claramente o autor
destaca as revoltas ressurgentes não ocidentais da década de 50 contrárias aos moldes
de civilização ocidental, que se firmam através de exploração econômica,
consolidando, portanto, imperialismos etnocêntricos. É dessa forma que a
ressurgência cultural é incitada por um espírito anti-capitalista e não por um
espírito comunista, a titulo de exemplo. Esse fenômeno é fruto de um embate
entre a racional e a irracional análise dos comportamentos e interação entre os
povos, e acaba gerando choques entre os entendimentos e métodos que circundam
todo o problema, ou seja, a admissão de quem entre dominado e dominador é
racional ou irracional. Para Gilberto Freyre, ainda assim, entre a confusão do
racional e do irracional, há um tipo de cooperação que admite o saber do outro
como saber aproveitável, haja vista que aconteceu nos exemplos de insurgências
citados no livro, como entre a ciência médica ocidental e o saber médico
oriental, ou entre o cristianismo e a criatividade africana que o enriquece.
Desde modo, apoiado sobre pensadores como Jean Puillon, se propõe uma
pluralidade de métodos onde seja possível se observar um comportamento
ocidental, científico e filosófico, esforçado na compreensão de orientações não
ocidentais.
Os portugueses, que sempre penetraram em culturas não
ocidentais, são vencidos, por assim dizer, pelo método paternal islâmico, que
admitia uma mistura entre as raças, desde que a prole herde do pai a cultura
islâmica, fazendo assim aumentar o numero de muçulmanos , enquanto que os portugueses ao não se misturarem (por se
considerarem seres superiores), são ultrapassados pelo islamismo, não se
configurando como insurgência política, mas justamente como uma ressurgência
cultural. Esta, não ocidental, comporta-se como opositora aos métodos culturais
do ocidente e busca, profundamente, uma autonomia nacional além da política,
mas também histórica e até mesmo folclórica, sugere o citado jornalista
Severino Bezerra Cabral Filho. Essa querida liberdade está em função da não
aceitação dos moldes racionais, tecnológicos, impostos pelas superpotências.
Por isso essa ressurgência árabe é mais “sócio-cultural” e “psicoculturais” do
que racial. Também nascem ressurgências das culturas ocidentais, como aconteceu
no meio eclesiástico, animada pelo então papa João Paulo II, que
equilibradamente resgata o caráter místico que havia sido perdido por causa do
racionalismo teológico e do ocidentalismo. Ergue-se pelas ressurgências um
vigor para se pesar os parâmetros sociais, através de “reavaliações”,
“reinterpretações” nos campos do saber e se põe sob prova a hegemonia da
racionalidade ocidental, salientando então a conquista do poder real e não de
uma única religião. Funcionalmente as ressurgências também observam o agir
indiscriminado do povo.
Para Gilberto Freyre, a ressurgência católica, que já fora
acima citada, é uma das provas mais palpáveis das atuais, quando retomando sua
natureza mística comunica novo empenho na promoção da fé cristã que exerce e
cria tanto no oriente como no ocidente um papel religioso capaz de, inferindo
na cultura valores caros ao cristianismo, organizar a vida social do individuo.
Ainda são apontadas as ressurgências socialistas e do neoconservadorismo.
Conscientemente de modo sugestivo, o autor do livro, apresenta cruzamentos
entre as ressurgências e as insurgências que são animadas pelo homem que busca
na história a liberdade que proporcione autonomia do povo, do seu estado e sua
cultura, garantindo um exercício pleno, coerente, do pensamento que é
fundamentado em bases e propagado por veículos distintos no ocidente e no
oriente. Isso é resultado de um sentimento de pertença que, embora seja abalado
durante os modos de opressão imperialista, não morre, e quando é alimentada
pelo acesso à consciência do poder, faz-se como motor gerador das motivações
suficientes para uma saída da inércia que estagna a identidade cultural de um
povo.
Tendo compreendido o produto da reflexão de Gilberto Freyre
em “As insurgências e ressurgências atuais”, pode-se caracterizá-lo como um processo social. E antes de definir a
natureza desse processo, deve-se entender que há uma série de processos numa
relação de causa e consequência.
O primeiro é o domínio,
ele representa um modo de interação onde há na relação determinações que
pretendem não eliminar, mas guiar a existência do outro. Deste modo não existe
espaço nas relações para a autonomia que garante ao individuo o exercício pleno
de sua cultura, por exemplo. Neste caso, sempre há uma orientação sobre o que
ser, o que fazer, como se posicionar, o que consumir, sobretudo em quem
acreditar e também há forte repressão que condena quando tais indicações não
são observadas. Muito embora haja, por vezes, boa convivência entre dominado e
dominador convém observar que isso se dá em função de uma busca de objetivos
comuns, ou seja, o dominado convive em harmonia, cooperando com seu dominador para
que se possa ao menos sobreviver. Todavia, isso não significa dizer que exista
uma aceitação interior dessa situação. No livro de Gilberto Freyre, esse
domínio é apresentado na Introdução do
autor, que toma como referência o patriarcalismo imperialista ocidental em
cruzamento com o não-ocidente. Com o
subtítulo do seu livro, “Cruzamentos de
sins e nãos num mundo em transição”, subtende-se uma resposta resistente
atual aos padrões e imposições da cultura ocidental no oriente.
Os processos sociais na sociedade retomam e criam situações
impulsionados “por interesses, imagens, expectativas e previsões” e evoluem em
tempo alternativo, podendo ser “lento e quase imperceptível” ou “rápido e
revolucionário”, e considerando como ponto de partida a visão de Gilberto, os
apontamentos de Sociologia nomeiam esse processo de insurgência e ressurgência
de disjuntivo, ao passo que possuem
vários estágios de conflitos que agravam as desigualdades entre os
indivíduos. Surgem conflitos de cultura,
de expectativas religiosas, e, num exemplo comparativo prático citado por
Gilberto Freyre, surge o conflito entre o que é racional e o que é irracional.
Esse exemplo é parte da problemática nas insurgências islâmicas analisadas por
Gilberto. Segundo ele há uma espécie de desejo de autonomia islâmica que não é
possível por conta da influência ocidental no espaço, gerando conflitos
anti-europeus que, por vezes, se manifestam graves e dramáticos. O conflito
(insurgência) é o segundo processo social.
Os conflitos manifestam-se nessas revanches e reerguimentos
culturais de modo aberto, vertical e horizontal, global, internacional, interno
e revolucionário. Pretende reorientar a vida de um modo geral, mostrando-se
assim revolucionário. É vertical quando resiste ao dominador de uma classe
diferente, mas pode ser horizontal quando a resistência é inter-individual.
Está difundido de modo global quando se luta contra aquilo que regulamenta a
vida coletiva, revela-se internacional porque envolve mais de dois estados, por
exemplo. E é interno posto que também se questionam as conjunturas estatais
internas.
Através de exemplo atual e perceptível das insurgências e
ressurgências islâmicas, as teorias sociológicas se tornam observáveis. O povo
islâmico possui história, língua, religião, costumes, economia e cultura
singulares, e, diga-se de passagem, consideradas sagradas. Essa cultura não
ocidental torna-se dominada nas colonizações pela cultura ocidental, cujas
essências são bem distintas, na África e no Oriente. Vale a ressalva de que o
fato de existir uma cultura dominadora, nesse caso, não significa dizer haja um
aniquilamento da cultura dominada, porém sem sombras de dúvidas não há um
exercício cultural livre, autônomo, autentico. A cultura dominada torna-se
periférica e vinculada a algo que não é racionalmente paralelo ao dominador. O
povo dominado é considerado, em algum prisma, inferior. Isso é perigoso.
Por mais que as gerações passem sendo dominadas, a
identidade cultural de um povo permanece viva, esperando a oportunidade de
voltar a se manifestar e enquanto essa oportunidade não surge a cultura
dominada vai se enriquecendo com a cultura dominadora sem perder a sua própria
essência e até mesmo vão criando laços de concorrência e de cooperação. Esse
terceiro processo é citado por Gilberto Freyre com o mesmo ideal que é apontado
pela sociologia: dá-se em função da obtenção de um objetivo de comum interesse.
E assim a contribuição entre a ciência medica ocidental e o saber médico
oriental é chamada de “cooperação concorrente”.
Certamente, mesmo havendo um número de conformados ao
domínio, existirá um número com força resistente, sempre pronto para uma
reação, para uma revolta, um grupo insurgente. Quando o povo decide por
resgatar sua liberdade, que segundo Gilberto Freyre é muito maior que liberdade
política, os conflitos são inevitáveis. E, no caso islâmico, os cruzamentos são
por vezes sangrentos.
A ressurgência cultural de um povo representa uma tentativa
de adesão àquilo que se é por natureza, representa a resistência social e
psicológica, não sendo em primeiro lugar uma resistência conflituosa entre
raças. Por isso, no livro também são apresentadas formas de ressurgências na
China em resposta ao marxismo ocidentalizado, ou uma ressurgência da medicina
não ocidentalizada e com destaque uma ressurgência eclesiástica. Esta
ressurgência da fé católica que retoma o caráter místico que lhe é própria e
havia sido dominado, suprimido por um racionalismo (ocidental) que fora
purificado pelo papa João Paulo II.
Quando as insurgências atuais tiverem se completado, elas
terão passado pelo terceiro processo social importante, a sucessão,
ressurgência. Segundo a Sociologia, a sucessão ocorre com certa frequência e representa a substituição de indivíduos ou
de grupos sociais, de modo que sejam substituídas as características essências e de valores dominantes.
Finalmente conclui-se que, muito embora haja uma relação de
dominação de uma cultura sobre outra, existem também mecanismos pelos quais os
dominados são impulsionados para a resistente insurgência e ressurgência. Esses
dois vocábulos nomeiam o que representa o direito que a pluralidade cultural
tem de manter-se diversa e autenticamente ligada ao povo cuja origem,
existência e perpetuação pertencem. Gilberto Freyre foi capaz de perceber nas
transações sociológicas atuais os elementos filosóficos que norteiam a ação do
homem que gera processos sociais. Esses processos permitem a mobilidade cíclica
da sociedade que através da interação entre os indivíduos mutuamente
interdependentes vai se tornando virtuosa, garantindo nas relações primarias ou
secundarias o acesso a participação livre e comprometida com a autenticidade
particular. Por uma comparação entre o texto de Gilberto Freyre e o Apontamento
de Sociologia, é possível entender que os estratagemas colonialistas mesmo
estando revestidos do ocidentalismo são passíveis de dominação. Para tanto
exige-se uma consciência cultural capaz de mover o individuo ao ponto de
fazê-lo resistir e lutar, resinificando sua história própria.
Por essa comparação intertextual, é possível compreender
sociologicamente a percepção de Gilberto Freyre em sua obra e também observar a
aplicação prática das teorias sociológicas. E em suma, sugere-se, por essa
análise comparativa, a presença de uma leitura científica dos processos sociais
que movem as insurgências e ressurgências sociais contemporâneas a Gilberto
Freyre.
Referência
DIONIZIO, Claudio. La Relación Social. In:______. Para compender el mundo: Apuntes de
Sociología. Tradução nossa. [S. I: s. n.], 2016. p. 19-23.
FREYRE, Gilberto. Introdução do autor. In:______. Insurgências e ressurgências atuais:
Cruzamentos de sins e nãos num mundo em transição. Rio de Janeiro: Globo,
1983. p. 15-51.