1. Da Sagrada Escritura como a verdadeira Palavra de Deus
Escritura Canônica.
Cremos e confessamos que as Escrituras Canônicas dos santos profetas e
apóstolos de ambos os Testamentos são a verdadeira Palavra de Deus, e
têm suficiente autoridade de si mesmas e não dos homens. O próprio Deus
falou aos patriarcas, aos profetas e aos apóstolos, e ainda nos fala a
nós pelas Santas Escrituras.
E
nesta Escritura Sagrada a Igreja Universal de Cristo tem a mais
completa exposição de tudo o que se refere à fé salvadora e à norma de
uma vida aceitável a Deus; e a esse respeito é expressamente ordenado
por Deus que a ela nada se acrescente ou dela nada se retire.
A Escritura ensina plenamente toda a piedade.
Julgamos, portanto, que destas Escrituras devem derivar-se a verdadeira
sabedoria e piedade, a reforma e o governo das igrejas, também a
instrução em todos os deveres da piedade; enfim, a confirmação de
doutrinas e a refutação de todos os erros, assim como todas as
exortações segundo a palavra do apóstolo: ‘Toda Escritura é inspirada
por Deus e útil para o ensino, para a repreensão”, etc. (II Tim
3.16-17). E ainda: “Escrevo-te estas cousas”, diz o apóstolo a Timóteo,
“para que fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus”, etc.
(I Tim 3.14-15).
A Escritura é a Palavra de Deus.
O mesmo apóstolo diz aos tessalonissenses: “Tendo vós recebido a
palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes, não como palavra
de homens, e, sim, como, em verdade é, a palavra de Deus”, etc. (I Tes
2.13). E o Senhor disse no Evangelho: “Não sois vós os que falais, mas o
Espírito de vosso Pai é quem fala em vós” (Mat 10.20); portanto, “quem
vos der ouvidos, ouve-me a mim; e, quem vos rejeitar, a mim me rejeita;
quem, porém, me rejeitar, rejeita aquele que me enviou”, (Mat 10.40; Luc
10.16; João 13.20).
A pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus.
Portanto, quando esta Palavra de Deus é agora anunciada na Igreja por
pregadores legitimamente chamados, cremos que a própria Palavra de Deus é
anunciada e recebida pelos fiéis; e que nenhuma outra Palavra de Deus
pode ser inventada, ou esperada do céu: e que a própria Palavra
anunciada é que deve ser levada em conta e não o ministro que a anuncia,
pois, mesmo que este seja mau e pecador, contudo a Palavra de Deus
permanece boa e verdadeira.
Nem
pensamos que a pregação exterior deve ser considerada infrutífera pelo
fato de a instrução na verdadeira religião depender da iluminação
interior do Espírito; porque está escrito: “Não ensinará jamais cada um
ao seu próximo... porque todos me conhecerão” (Jer 31.34), e “nem o que
planta é alguma cousa, nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento”,
(I Cor 3.7). Pois, ainda que ninguém possa vir a Cristo, se não for
levado pelo Pai (cf. João 6.44), se não for interiormente iluminado pelo
Espírito Santo, sabemos contudo que é da vontade de Deus que sua
palavra seja pregada também externamente. Deus poderia, na verdade, pelo
seu Santo Espírito, ou diretamente pelo ministério do anjo, sem o
ministério de São Pedro, ter ensinado a Cornélio (cf. At 10.1 ss); não
obstante, ele o envia a São Pedro, a respeito de quem o anjo diz: “Ele
te dirá o que deves fazer” (cf. At 11.14).
A iluminação interior não elimina a pregação exterior.
Aquele que ilumina interiormente dando aos homens o Espírito Santo é o
mesmo que deu aos discípulos este mandamento: “Ide por todo o mundo e
pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16.5). E assim, em Filipos, São
Paulo pregou a Palavra externamente a Lídia, vendedora de púrpura; mas o
Senhor, internamente, abriu o coração da mulher (At 16.14). E o mesmo
São Paulo, numa bela gradação, em Rom 10.17, chega, afinal, a esta
conclusão: “E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de
Cristo”.
Reconhecemos,
entretanto, que Deus pode iluminar quem ele quiser e quando quiser,
mesmo sem ministério externo, pois isso está em seu poder; mas aqui
falamos da maneira usual de instruir os homens, que nos foi comunicado
por Deus, tanto por mandamento como pelo exemplo.
Heresias.
Detestamos, portanto, todas as heresias de Artêmon, dos maniqueus, dos
valentinianos, de Cerdon e dos marcionitas, os quais negaram que as
Escrituras procediam do Espírito Santo; ou não aceitaram algumas partes
delas, ou as interpelaram e corromperam.
Apócrifos.
Contudo, não dissimulamos o fato de que certos livros do Velho
Testamento foram chamados Apócrifos pelos antigos autores, e
Eclesiásticos por outros, porquanto alguns admitiam que fossem lidos nas
igrejas, não, porém, invocados para confirmar a autoridade da fé. Assim
também Santo Agostinho, em sua De Civitate Dei, livro 18, cap.
38, observa que “nos livros dos Reis, nomes e livros de certos profetas
são citados”; mas acrescenta que “eles não se encontram no Cânon”; e que
“os livros que temos são suficientes para a piedade”.
2. Da interpretação das Escrituras Sagradas; e dos santos padres, dos concílios e das tradições
A verdadeira interpretação da Escritura.
O Apóstolo São Pedro disse que as Escrituras Sagradas não são de
interpretação particular (II Ped 1.20). Assim não aprovamos quaisquer
interpretações; pelo que nem reconhecemos como a verdadeira ou genuína
interpretação das Escrituras a que se chama simplesmente a opinião da
Igreja Romana, isto é, a que os defensores da Igreja Romana claramente
sustentam que deve ser imposta à aceitação de todos. Mas reconhecemos
como ortodoxa e genuína a interpretação da Escritura que é retirada das
próprias Escrituras segundo o gênio da língua em que elas foram
escritas, segundo as circunstâncias em que foram registradas, e pela
comparação de muitíssimas passagens semelhantes e diferentes, e que
concorda com a regra de fé e amor, e mais contribui para a glória e a
salvação dos homens.
Interpretação dos santos padres.
Por isso, não desprezamos as interpretações dos santos padres gregos e
latinos, nem rejeitamos as suas discussões e os seus tratados sobre
assuntos sagrados, sempre que concordem com as Escrituras; mas
respeitosamente divergimos deles, quando neles encontramos coisas
estranhas às Escrituras ou contrárias a elas. E não julgamos fazer-lhes
qualquer injustiça nesta questão, visto que todos eles, unanimemente,
não procuram igualar seus escritos com as Escrituras Canônicas, mas nos
mandam verificar até onde eles concordam com elas ou delas discordam,
aceitando o que está de acordo com elas e rejeitando o que está em
desacordo.
Concílios. Nessa mesma ordem colocam-se também as definições e cânones dos concílios.
Por
esse motivo, nas controvérsias religiosas não aceitamos como imposição
as simples opiniões dos Santos Padres ou os decretos dos concílios;
muito menos, os costumes herdados ou, até, o fato de ser uma opinião
partilhada por uma multidão ou consagrada por um longo tempo. Quem é o
juiz? Portanto, em questão de fé, não admitimos juiz algum, a não ser o
próprio Deus, que, pelas Santas Escrituras, proclama o que é verdadeiro,
o que é falso, o que deve ser seguido ou o que deve ser evitado. Assim,
apoiamo-nos exclusivamente nos julgamentos de homens espirituais, por
eles tomados à Palavra de Deus. Jeremias e outros profetas condenaram
severamente os concílios de sacerdotes estabelecidos contra a lei de
Deus; e nos advertiram diligentemente que não ouvíssemos os nossos pais,
nem trilhássemos os seus caminhos, porque eles, andando segundo suas
próprias invenções se desviaram da lei de Deus.
Tradições de homens.
Rejeitamos, igualmente, as tradições humanas, mesmo que venham
adornadas de títulos atraentes, como se fossem divinas e apostólicas,
entregues à Igreja de viva voz pelos apóstolos e, como pelas mãos de
varões apostólicos, aos bispos que os sucederam, as quais, quando
comparadas com as Escrituras delas discrepam, e por essa discrepância
revelam que, de modo nenhum, são apostólicas. Como os apóstolos não se
contradisseram entre si quanto à doutrina, assim os varões apostólicos
não ensinaram nada contrário aos apóstolos. Ao contrário, seria ímpio
afirmar que os apóstolos, de viva voz, tivessem ensinado coisas
contrárias aos seus escritos. São Paulo afirma claramente que ele
ensinava as mesmas coisas em todas as igrejas (I Co 4.17). E mais:
“Porque nenhuma outra cousa vos escrevemos, além das que ledes e bem
compreendeis” (II Co 1.13). Também, em outra passagem, testifica que ele
e seus discípulos - a saber, os varões apostólicos - andavam do mesmo
modo e, ligados pelo mesmo Espírito, faziam todas as coisas (II Co
12.18). Os judeus também tiveram, no passado, as tradições dos seus
anciãos, mas essas tradições foram severamente repetidas pelo Senhor,
que mostrou que a sua observância põe entraves à lei de Deus, e que por
meio delas Deus é em vão adorado (Mat. 15.1 ss; Mc 7.1 ss)
3. De Deus, sua unidade e trindade
Deus é uno.
Cremos e ensinamos que Deus é um em essência ou natureza, subsistindo
por si mesmo, todo suficiente em si mesmo, invisível, incorpóreo,
imenso, eterno, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis, o
supremo-bem, vivo, vivificador e preservador de todas as coisas,
onipotente e supremamente sábio, clemente ou misericordioso, justo e
verdadeiro. Abominamos a pluralidade de deuses, porque está claramente
escrito: “O Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Deut 6.4). “Eu sou o
Senhor teu Deus. Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20.2-3). “Eu
sou o Senhor, e não há outro; além de mim não há Deus. Deus justo e
Salvador não há além de mim” (Is 45.5.21). “Senhor, Senhor Deus
compassivo, clemente e longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade”
(Êx 34.6).
Deus é trino.
Entretanto, cremos e ensinamos que o mesmo Deus imenso, uno e indiviso é
inseparavelmente e sem confusão, distinto em pessoas - Pai, Filho e
Espírito Santo - e, assim como o Pai gerou o Filho desde a eternidade, o
Filho foi gerado por inefável geração, e o Espírito Santo
verdadeiramente procede de um e outro, desde a eternidade e deve ser com
ambos adorado.
Assim,
não há três deuses, mas três pessoas, consubstanciais, co-eternas e
co-iguais, distintas quanto às hipóstases e quanto à ordem, tendo uma
precedência sobre a outra, mas sem qualquer desigualdade. Segundo a
natureza ou essência, acham-se tão unidas que são um Deus, e a essência
divina é comum ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
A
Escritura ensina-nos manifesta distinção de pessoas, quando o anjo diz,
entre outras coisas, à bem-aventurada Virgem; “Descerá sobre ti o
Espírito Santo e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por
isso também o ente santo que há de nascer, será chamado Filho de Deus”
(Luc 1.35). E, igualmente, no batismo de Cristo, ouve-se uma voz do céu a
seu respeito, dizendo: “Este é o meu Filho amado” (Mat 3.17). O
Espírito Santo também apareceu em forma de pomba (João 1.32). E, quando o
Senhor mesmo mandou os apóstolos batizar, mandou-os batizar “em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mat 28.19). Em outra parte do
Evangelho, diz ele: “O Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome”
(João 14.26). E noutro lugar: “Quando, porém, vier o Consolador, que eu
vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede,
esse dará testemunho de mim”, etc. (João 15.26). Em resumo, recebemos o
Credo dos Apóstolos, porque ele nos comunica a verdadeira fé.
Heresias.
Portanto, condenamos judeus e maometanos, e todos quantos blasfemam da
Trindade santa e digna de adoração. Condenamos, também, todas as
heresias e os heréticos que ensinam que o Filho e o Espírito Santo são
Deus apenas de nome, e ainda que há algo criado e subserviente, ou
subordinado a outro, na Trindade, e que nela há algo desigual, maior ou
menor, corpóreo ou corporeamente concebido, diferente quanto aos
costumes ou à vontade, confuso ou solitário, como se o Filho e o
Espírito Santo fossem os sentimentos e propriedades de um Deus o Pai,
como pensavam os monarquistas, os novacianos, Praxeas, os
patripassianos, Sabélio, Paulo de Samosata, Êcio, Macedônio, os
antropomorfitas, Ário e outros semelhantes.
4. Dos ídolos ou imagens de Deus, de Cristo e dos santos
Imagens de Deus.
Visto que Deus como Espírito é, em essência, invisível e imenso, não
pode, certamente, ser expresso por qualquer arte ou imagem. Por essa
razão, não tememos afirmar com a Escritura que imagens de Deus não
passam de mentiras. Assim, rejeitamos não somente os ídolos dos gentios
mas também as imagens dos cristãos.
Imagens de Cristo.
Embora Cristo tenha assumo a natureza humana, não a assumiu para
fornecer modelo a escultores e pintores. Afirmou que não veio “revogar a
lei ou os profetas” (Mat 5.17). E as imagens são proibidas pela lei e
pelos profetas (Deut 4.15; Is 44.9). Afirmou que a sua presença corporal
não seria de proveito para a Igreja, e prometeu que estaria junto de
nós, para sempre, pelo seu Espírito (João 16.7). Quem, pois, haveria de
crer que uma sombra ou semelhança de seu corpo traria qualquer benefício
para as almas piedosas? (II Co 5.5). Se ele vive em nós pelo seu
Espírito, somos já os templos de Deus (I Co 3.16). Mas, “que ligação há
entre o santuário de Deus e os ídolos?” (II Co 6.16).
Imagens de santos.
E desde que os espíritos bem-aventurados e os santos do céu, quando
viviam aqui na terra, rejeitaram qualquer culto de si mesmos (At 3.12
ss; 14.11 ss; Apoc 14.7; 22.9) e condenaram as imagens, poderá alguém
achar plausível que os santos e anjos celestiais se agradem com suas
imagens, diante das quais os homens se ajoelham, descobrem as cabeças e
dispensam outras honras?
Para
instruir os homens na religião e relembrá-los das coisas divinas e da
sua salvação, o Senhor ordenou que se pregasse o Evangelho (Mc 16.15) - e
não que se pintassem quadros para ensinar os leigos. Instituiu também
os sacramentos, mas em nenhum lugar estabeleceu imagens.
A escritura dos leigos.
Demais, para onde quer que volvamos os olhos, vemos as criaturas de
Deus, vivas e verdadeiras ao nosso olhar, as quais, se bem examinadas
como convém, causam ao observador uma impressão muito mais viva do que
todas as imagens ou pinturas vãs, imóveis, frágeis e mortas, feitas
pelos homens, das quais com razão disse o profeta: “Têm olhos, e não
vêem” (Sal 115.5).
Lactâncio, Epifânio e Jerônimo.
Por isso aprovamos a opinião de Lactânio, escritor antigo, que diz:
“Indubitavelmente nenhuma religião existe onde há uma imagem”.
Afirmamos, também, que o bem-aventurado bispo Epifânio procedeu bem
quando, ao encontrar nas portas de uma igreja um véu no qual estava
pintada uma figura que se dizia ser de Cristo ou de algum santo,
rasgou-o e o arrancou dali, por ver, contra a autoridade da Escritura, a
figura de um homem afixada na Igreja de Cristo. Por isso, ele ordenou
que dali por diante tais véus, que eram contrários à nossa religião, não
fossem afixados na Igreja de Cristo, mas antes fossem removidas essas
coisas duvidosas, indignas da Igreja de Cristo e dos fiéis. Além disso,
aprovamos esta afirmação de Santo Agostinho sobre a verdadeira religião:
“Não seja a nossa religião um culto de obras humanas: os próprios
artistas que as fazem são melhores do que elas; no entanto, não devemos
adorá-los” (De Vera Religione, IV, 108).
5. Da adoração, do culto e da invocação de Deus por Jesus Cristo, único Mediador
Somente Deus deve ser adorado e cultuado.
Ensinamos que somente o verdadeiro Deus deve ser adorado e cultuado.
Esta honra não concedemos a nenhum outro, segundo o mandamento do
Senhor: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto” (Mat
4.10). Sem dúvida, todos os profetas censuraram severissimamente o povo
de Israel todas as vezes que este adorou e cultuou deuses estranhos e
não o único Deus verdadeiro. E ensinamos que Deus deve ser adorado e
cultuado como ele mesmo nos ensinou a cultuá-lo, a saber, “em Espírito e
em verdade” (João 4.23 ss), e não com qualquer superstição, mas com
sinceridade, segundo a sua Palavra; para que, em tempo algum, não venha
ele a dizer-nos: “Quem vos requereu o só pisardes os meus átrios?” (Is
1,12; Jer 6,20). São Paulo também diz: “Deus não é servido por mãos
humanas, como se de alguma cousa precisasse”, etc. (At 17,25).
Só Deus deve ser invocado pela exclusiva mediação de Cristo.
Em todas as crises e provações de nossa vida invocamos somente a ele e
isso pela mediação de Jesus Cristo, nosso único mediador e intercessor.
Eis o que nos é claramente ordenado: “Invoca-me no dia da angústia: eu
te livrarei, e tu me glorificarás” (Sal 50,15). Temos uma promessa
generosíssima do Senhor, que disse: “Se pedirdes alguma cousa ao Pai,
ele vo-la concederá em meu nome” (João 16,23), e: “Vinde a mim todos os
que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mat 11,28).
Está escrito: “Como, porém, invocarão aquele em que não creram?” (Rom
10.14). Nós cremos em um só Deus, e só a ele invocamos, e o fazemos
mediante Cristo. “Porquanto há um só Deus, diz o Apóstolo, e um só
Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem” (I Tim 2,5).
Também se diz: “Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai,
Jesus Cristo, o justo”, etc. (I João 2,1).
Os santos não devem ser adorados, cultuados ou invocados.
Por essa razão não adoramos, nem cultuamos nem invocamos os santos dos
céus, nem outros deuses, nem os reconhecemos como nossos intercessores
ou mediadores perante o Pai que está no céu. Deus e Cristo, o Mediador,
nos são suficientes. Nem concedemos a outros a honra que é devida
somente a Deus e ao seu Filho, porque ele claramente disse: “A minha
glória, pois, não a darei a outrem” (Is 42.8). E porque São Pedro disse:
“Porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os
homens, pelo qual importa que sejamos salvos”, a não ser o nome de
Cristo (At 4,12). Nele, os que dão seu assentimento pela fé não buscam
coisa alguma além de Cristo.
A honra devida aos santos.
Entretanto, não desprezamos os santos nem os tratamos como seres
vulgares. Reconhecemo-los como membros vivos de Cristo e amigos de Deus,
que venceram gloriosamente a carne e o mundo. Por isso nós os amamos
como irmãos e também os honramos; não, porém, com qualquer espécie de
culto, mas os encaramos com apreciação e respeito e com justos louvores.
Também os imitamos, pois com ardentíssimos anseios e súplicas desejamos
ser imitadores da sua fé e das suas virtudes, partilhar com eles a
salvação eterna, habitar eternamente com eles na presença de Deus e
regozijar-nos com eles em Cristo. Neste ponto aprovamos o que diz Santo
Agostinho: “Não seja a nossa religião um culto dos mortos. Pois, se
viveram vidas santas, não devemos supor que estejam à procura de tais
honras; ao contrário, querem que adoremos aquele por cuja iluminação
eles se alegram de que sejamos conservos dos seus méritos. Devem,
portanto, ser honrados pela imitação, e não adorados por religião”, etc.
(De Vera Religione, LV, 108).
Relíquias dos santos.
Muito menos cremos que as relíquias dos santos devem ser adoradas ou
cultuadas. Aqueles santos antigos pareciam ter honrado suficientemente
seus mortos, se de modo decente tinham entregado seus restos mortais à
terra, depois que os espíritos subiram ao alto. E consideravam que as
mais nobres relíquias de seus ancestrais eram suas virtudes, sua
doutrina e sua fé, as quais, como eles as recomendavam pelo louvor dos
seus mortos, assim se esforçavam para imitá-las enquanto viviam na
terra.
Juramento só pelo nome de Deus.
Aqueles homens antigos não juravam senão pelo nome do único Deus, Javé,
como ordenava a lei divina. Como por ela é proibido jurar pelo nome de
deuses estranhos (Êx 23.13; Deut 10.20), assim não juramos em nome dos
santos, como se exige de nós. Rejeitamos, portanto, em todas estas
questões, uma doutrina que atribui mais do que o devido aos santos que
estão nos céus.
6. Da providência de Deus
Todas as coisas são governadas pela providência de Deus.
Cremos que tudo o que há no céu e na terra, e em todas as criaturas, é
preservado e governado pela providência deste Deus sábio, eterno e
onipotente. Davi o testifica e diz: “Excelso é o Senhor acima de todas
as nações, e a sua glória acima dos céus. Quem há semelhante ao Senhor
nosso Deus, cujo trono está nas alturas; que se inclina para ver o que
se passa no céu e sobre a terra?” (Sal 113,4 ss). Outra vez:
“Esquadrinhas... todos os meus caminhos. Ainda a palavra me não chegou à
língua, e tu, Senhor, já a conheces toda” (Sal 139, 3 ss). São Paulo
também testifica e declara: “Nele vivemos, e nos movemos, e existimos”
(At 17, 28), e “dele e por meio dele e para ele são todas as cousas”
(Rom 11, 36). Portanto Santo Agostinho, muito acertadamente e segundo a
Escritura, declarou em seu livro De Agone Christi, cap. 8: “O
Senhor disse: ‘Não se vendem dois pardais por um asse? e nenhum deles
cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai’” (Mat 10.29). Assim
falando, ele quis mostrar que aquilo que os homens consideram de valor
insignificante é governado pela onipotência de Deus. Porquanto aquele
que é a verdade diz que as aves do céu são alimentadas por ele e os
lírios do campo são vestidos por ele; e diz também, que os cabelos de
nossa cabeça estão contados (Mat 6.26 ss).
Os Epicureus.
Condenamos, portanto, os epicureus que negam a providência de Deus e
todos quantos blasfemem dizendo que Deus está ocupado com os céus e nem
nos vê, nem vê nossos interesses, nem cuida de nós. Davi, o rei-profeta,
também os condenou, quando disse: “Senhor, até quando exultarão os
perversos? Dizem: O Senhor não vê; nem disso faz caso o Deus de Jacob.
Atendei, ó estúpidos dentre o povo; e vós insensatos, quando sereis
prudentes? O que fez o ouvido, acaso não ouvirá? e o que formou os
olhos, será que não enxerga?” (Sal 94, 3.7-9).
Os meios não devem ser desprezados.
Entretanto, não desprezamos como inúteis os meios pelos quais opera a
providência divina, mas ensinamos que devemos acomodar-nos a eles, na
medida em que nos são recomendados na Palavra de Deus. Eis por que
desaprovamos as afirmações temerárias daqueles que dizem que, se todas
as coisas são geridas pela providência de Deus, então nossos esforços e
diligências são inúteis. Seria o bastante deixarmos tudo ao governo da
divina providência e não nos preocuparmos nem fazermos coisa alguma. São
Paulo reconhecia que navegava sob a providência de Deus, que lhe
dissera: “...deste testemunho a meu respeito em Jerusalém, assim importa
que também o faças em Roma” (At 23.11), e em adição lhe havia
prometido: “Porque nenhuma vida se perderá de dentre vós... pois nenhum
de vós perderá nem mesmo um fio de cabelo” (At. 27, 22.34). Todavia,
quando os marinheiros estavam pensando em abandonar o navio, ele mesmo
disse ao centurião e aos soldados: “Se estes não permanecerem a bordo,
vós não podereis salvar-vos” (At 27.31). Deus, que destinou a cada coisa
o seu fim, ordenou o começo e os meios pelos quais a coisa atinge seu
alvo. Os pagãos atribuem as coisas à fortuna cega e ao acaso incerto. No
entanto, São Tiago não deseja que digamos: “Hoje, ou amanhã, iremos
para a cidade tal, e lá passaremos um ano, e negociaremos e teremos
lucros”, mas aconselha: “Em vez disso, deveis dizer: Se o Senhor quiser,
não só viveremos, como faremos isto ou aquilo” (Tiago 4, 13.15). E
Santo Agostinho diz: “Tudo o que para os homens vãos, na natureza parece
acontecer por acidente, realiza simplesmente a sua Palavra, porque não
acontece senão por sua ordem” (Enarrationes in Psalmos, 148).
Assim, parecia acontecer por mero acaso quando Saul, enquanto procurava
as jumentas de seu pai, inesperadamente se encontrou com o profeta
Samuel. Mas previamente o Senhor dissera ao profeta: “Amanhã a estas
horas te enviarei um homem da terra de Benjamim” (I Sam 9.16).
7. Da criação de todas as coisas: dos anjos, do diabo e do homem Deus criou todas as coisas.
Este Deus bom e onipotente criou todas as coisas, visíveis e
invisíveis, pela sua Palavra co-eterna, e as preserva pelo seu Espírito
co-eterno, como Davi testificou, quando disse: “Os céus por sua palavra
se fizeram, e pelo sopro de sua boca o exército deles” (Sal 33.6). E,
como diz a Escritura, tudo o que Deus fez era muito bom, e foi feito
para proveito e uso do homem. Ora, afirmamos que todas aquelas coisas
partiram de um princípio.
Maniqueus e Marcionitas.
Portanto, condenamos os maniqueus e os marcionitas que impiamente
imaginaram duas substâncias e duas naturezas, a do bem e a do mal;
também dois princípios e dois deuses, um contrário ao outro, um bom e um
mau.
Dos anjos e do diabo.
Entre todas as criaturas, os anjos e os homens são os mais excelentes.
Dos anjos declara a Santa Escritura: “Fazes a teus anjos ventos, e a
teus ministros, labaredas de fogo” (Sal 104, 4). Diz ainda: “Não são
todos eles espíritos ministradores enviados para serviço, a favor dos
que hão de herdar a salvação?” (Heb 1, 14). Do Diabo testifica o próprio
Senhor Jesus: “Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na
verdade. Quando ele profere a mentira, fala do que lhe é próprio,
porque é mentiroso e pai da mentira” (João 8.44). Portanto, ensinamos
que alguns anjos persistiram na obediência e foram designados para fiel
serviço a Deus e aos homens, mas outros caíram pela sua própria vontade e
foram precipitados na ruína, tornando-se inimigos de todo o bem e dos
fiéis, etc.
Do homem.
Já do homem diz a Escritura que no princípio ele foi criado bom, à
imagem e semelhança de Deus, que Deus o colocou no Paraíso e lhe
sujeitou todas as coisas (Gén cap. 2). Isso é o que Davi magnificamente
celebra no Salmo 8. Além disso, Deus lhe deu uma esposa e os abençoou.
Afirmamos também que o homem consiste de duas substâncias diferentes
numa pessoa: de uma alma imortal, que, quando separada do corpo, nem
dorme nem morre, e de um corpo mortal que, porém, ressuscitará dos
mortos no juízo final, de modo que desde então o homem todo, na vida ou
na morte, viva para sempre.
As seitas.
Condenamos todos os que ridicularizam ou mediante argumentos subtis
põem em dúvida a imortalidade das almas, ou dizem que a alma dorme ou é
parte de Deus. Em resumo, condenamos todas as opiniões de todos os
homens, por mais numerosos que sejam, que ensinam diversamente do que, a
respeito da criação, dos anjos e dos demônios, e do homem, nos foi
ensinado pelas Santas Escrituras na Igreja apostólica de Cristo.
8. Da queda do homem, do pecado e sua causa
A queda do homem.
Desde o inicio foi o homem Por Deus criado à imagem de Deus, em justiça
e santidade de verdade, bom e reto, mas, por instigação da serpente e
pela sua própria culpa, ele se afastou da bondade e da retidão e
tornou-se sujeito ao pecado, à morte e a várias calamidades. E qual veio
ele a ser pela queda - isto é, sujeito ao pecado, à morte e a várias
calamidades - tais são todos os que dele descenderam.
Pecado.
Por pecado entendemos a corrupção inata do homem, que se comunicou ou
propagou de nossos primeiros pais, a todos nós, pela qual nós -
mergulhados em más concupiscências, avessos a todo o bem, inclinados a
todo o mal, cheios de toda impiedade, de descrenças, de desprezo e de
ódio a Deus - nada de bom podemos fazer, e, até, nem ao menos podemos
pensar por nós mesmos. Além disso, à medida que passam os anos, por
pensamentos, palavras e obras más, contrárias à lei de Deus, produzimos
frutos corrompidos, dignos de uma árvore má (Mat 12,33 ss). Por essa
razão, sujeitos à ira de Deus, por nossas próprias culpas, estamos
expostos ao justo castigo, de modo que todos nós teríamos sido por Deus
lançados fora, se Cristo, o Libertador, não nos tivesse reconduzido.
Morte.
Por morte entendemos não só a morte corpórea, que todos nós teremos de
experimentar uma vez, por causa dos pecados, mas também os suplícios
eternos devidos aos nossos pecados e à nossa corrupção. Eis o que diz o
apóstolo: “Estando vós mortos nos vossos delitos e pecados... éramos por
natureza filhos da ira, como também os demais. Mas Deus, sendo rico em
misericórdia... e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida
juntamente com Cristo” (Ef 2.1 ss). E também: “Portanto, assim como por
um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim
também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rom
5.12).
Pecado original; pecados atuais.
Reconhecemos, portanto, que há pecado original em todos os homens.
Reconhecemos que todos os outros pecados que deste provêm são chamados, e
verdadeiramente são, pecados, qualquer que seja o nome que lhes seja
dado - pecados mortais, veniais ou mesmo aquele que é chamado pecado
contra o Espírito Santo, que nunca é perdoado (Mc 3.29; I João 5.16).
Confessamos também que os pecados não são iguais: embora surjam da mesma
fonte de corrupção e incredulidade, alguns são mais graves que os
outros. Como disse o Senhor, haverá mais tolerância para Sodoma do que
para a cidade que rejeita a palavra do Evangelho (Mat 10.14 ss; 11.20
ss).
As seitas.
Condenamos, portanto, todos os que ensinaram o contrário disto,
especialmente Pelágio e todos os pelagianos, juntamente com os
jovinianos, que, com os estóicos, consideravam todos os pecados como
iguais. Em toda esta questão concordamos com Santo Agostinho, que das
Escrituras Sagradas extraiu seu ponto de vista e por elas o defendeu.
Mais ainda, condenamos Florino e Blasto, contra quem escreveu Irineu, e
todos os que fazem Deus o autor do pecado.
Deus não é o autor do pecado; e até onde se pode dizer que ele endurece.
Está claramente escrito: “Tu não és Deus que se agrade com a
iniqüidade. Aborreces a todos que praticam iniqüidade. Tu destróis os
que proferem mentira” (Sal 5.4 ss). E de novo: “Quando ele profere a
mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira”
(João 8.44). Além disso, há em nós suficiente pecado e corrupção, não
sendo necessário que Deus em nós infunda uma nova e ainda maior
depravação. Quando, portanto, se diz nas Escrituras que Deus endurece,
cega e entrega a uma disposição réproba de mente, deve-se entender que
Deus o faz mediante um justo juízo, como um Juiz Vingador e justo.
Finalmente, sempre que na Escritura se diz ou parece que Deus faz algo
mal, não se diz, por isso, que o homem não pratique o mal, mas que Deus o
permite e não o impede, segundo o seu justo juízo, que poderia
impedi-lo se o quisesse, ou porque ele transforma o mal do homem em bem,
como fez no caso do pecado dos irmãos de José, ou porque ele próprio
controla os pecados, para que não irrompam e grassem mais largamente do
que convém. Santo Agostinho escreve em seu Enchiridion: “De modo
admirável e inexplicável não se faz além da sua vontade aquilo que
contra a sua vontade faz. Pois não se faria, se ele não o permitisse. E,
no entanto, ele não o permite contra a vontade, mas voluntariamente. O
bom não permitiria que se fizesse o mal, a não ser que, sendo
onipotente, pudesse do mal fazer o bem”. É isso o que ele diz.
Questões curiosas.
As demais questões - tais como, se Deus quis que Adão caísse, ou se o
incitou à queda, ou por que não impediu a queda e outras semelhantes -
nós as reconhecemos como curiosas (salvo, talvez, se a impiedade dos
heréticos ou de outros homens grosseiros nos leve a explicá-las também,
com base na Palavra de Deus, como freqüentemente o fizeram os piedosos
doutores da Igreja), sabendo que o Senhor proibiu o homem de comer do
fruto proibido e puniu sua transgressão. Sabemos também que as coisas
que se fazem não são más com respeito à providência, à vontade e ao
poder de Deus, mas com respeito a Satanás e à nossa vontade que se opõe à
vontade de Deus.
9. Do livre arbítrio e da capacidade humana
Nesta
questão, que sempre produziu muitos conflitos na Igreja, ensinamos que
se deve considerar uma tríplice condição ou estado do homem.
Qual era o homem antes da queda.
Há o estado em que o homem se encontrava no princípio, antes da queda;
era certamente reto e livre, de modo que podia continuar no bem ou
declinar para o mal, mas inclinou-se para o mal e se envolveu a si mesmo
e a toda a raça humana em pecado e morte, como se disse acima.
Qual se tornou o homem depois da queda.
Depois, importa considerar qual se tornou o homem depois da queda. Sem
dúvida, seu entendimento não lhe foi retirado, nem foi ele privado de
vontade, nem foi transformado inteiramente numa pedra ou árvore; mas seu
entendimento e sua vontade foram de tal sorte alterados e enfraquecidos
que não podem mais fazer o que podiam antes da queda. O entendimento se
obscureceu, e a vontade, que era livre, tornou-se uma vontade escrava.
Agora ela serve ao pecado, não involuntária mas voluntariamente. Tanto é
assim que o seu nome é “vontade”; não é “não – vontade”.
O homem pratica o mal por sua própria vontade.
Portanto, quanto ao mal ou ao pecado, o homem não é forçado por Deus ou
pelo Diabo, mas pratica o mal espontaneamente e nesse sentido ele tem
arbítrio muito livre. Mas o fato de vermos, não raro, que os piores
crimes e desígnios dos homens são impedidos por Deus de atingir seus
propósitos não tolhe a liberdade do homem na prática do mal, mas é Deus
que pelo seu próprio poder impede aquilo que o homem livremente
determinou de modo diverso. Assim, os irmãos de José livremente
determinaram desfazer-se dele, mas não o puderam, porque outra coisa
parecia bem ao conselho de Deus.
O homem por si só não é capaz do bem.
Com referência ao bem e à virtude, o entendimento do homem, por si
mesmo, não julga retamente a respeito das coisas divinas. A Escritura
evangélica e apostólica requer regeneração de todos aqueles de entre nós
que desejamos ser salvos. Por conseguinte, nosso primeiro nascimento de
Adão em nada contribui para nossa salvação. São Paulo diz: “O homem
natural não aceita as cousas do Espírito de Deus”, etc. (I Co 2.14). E
em outra passagem ele afirma que nós, por nós mesmos, não somos capazes
de pensar nada de bom (II Co 3.5). Ora, sabe-se que a mente ou
entendimento é a luz da vontade, e quando o guia é cego, é óbvio até
onde a vontade poderá chegar. Por isso, o homem ainda não regenerado não
tem livre arbítrio para o bem e nenhum poder para realizar o que é bom.
O Senhor diz no Evangelho: “Em verdade, em verdade vos digo: Todo o que
comete pecado é escravo do pecado” (João 8.34). E o apóstolo São Paulo
diz: “Por isso o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está
sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar” (Rom 8.7). O entendimento
das coisas terrenas, porém, não é inteiramente nulo no homem decaído.
Compreensão das artes.
Deus em sua misericórdia permitiu que permanecesse o talento natural,
apesar de este distar muito daquele que existia no homem antes da queda.
Deus manda o homem cultivar o seu talento e, ao mesmo tempo, lhe
acrescenta dons e favores. E é manifesto que não fazemos nenhum
progresso em todas as artes sem a bênção de Deus. Certamente, a
Escritura atribui todas as artes a Deus; e, na verdade, até os pagãos
atribuem a origem das artes a deuses, que seriam os seus inventores.
Quais são os poderes dos regenerados, e de que modo é livre o seu arbítrio.
Finalmente, devemos ver se os regenerados têm e até que ponto têm livre
arbítrio. Na regeneração, o entendimento é iluminado pelo Espírito
Santo, para que compreenda os mistérios e a vontade de Deus. E a própria
vontade não é somente mudada pelo Espírito, mas é também equipado com
poderes, de modo, que ela espontaneamente deseje o bem e seja capaz de
praticá-la (Rom 8.1 ss). Se não concedermos isso, negaremos a liberdade
cristã e introduziremos uma servidão geral. Mas também o profeta
registra o que Deus diz: “Na mente lhes imprimirei as minhas leis,
também no coração lhas inscreverei” (Jer 31.33; Ez 36.26 ss). E o Senhor
também diz no Evangelho: “Se, pois, o Filho vos libertar,
verdadeiramente sereis livres” (João 8.36). E São Paulo também escreve
aos filipenses: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por
Cristo, e não somente de crerdes nele” (Fil 1.29). E outra vez: “Estou
plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de
completá-la até ao dia de Cristo Jesus” (v. 6). E ainda: “Deus é quem
efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”
(2.13).
Os regenerados operam não só passiva, mas ativamente.
Entretanto, ensinamos que há duas coisas a serem observadas: Primeiro,
que os regenerados, na sua eleição e operação, não agem só passiva mas
ativamente. São levados por Deus a fazer por si mesmos o que fazem.
Santo Agostinho muito bem afirma que “Deus é nosso ajudador. Mas ninguém
pode ser ajudado, se não aquele que faz alguma coisa”. Os maniqueus
despojavam o homem de toda ação e o faziam semelhante a uma pedra ou a
um pedaço de pau.
O livre arbítrio é fraco nos regenerados.
Segundo, nos regenerados permanece a fraqueza. Desde que o pecado
permanece em nós, e nos regenerados a carne luta contra o espírito até o
fim de nossa vida, eles não conseguem realizar livremente tudo o que
planejaram. Isso é confirmado pelo apóstolo em Rom 7 e Gal 5. Portanto, é
fraco em nós o livre arbítrio por causa dos remanescentes do velho Adão
e da corrupção humana inata, que permanece em nós até o fim de nossa
vida. Entretanto, desde que os poderes da carne e os remanescentes do
velho homem não são tão eficazes que extingam totalmente a operação do
Espírito, os fiéis são por isso considerados livres, mas de modo tal que
reconhecem a própria fraqueza e não se gloriam de modo algum em seu
livre arbítrio. Os fiéis devem ter sempre em mente o que Santo Agostinho
tantas vezes inculca, segundo o apóstolo: “o que tendes que não
recebestes? Se, pois, o recebestes, por que vos vangloriais, como se não
fosse um dom?” A isso ele acrescenta que aquilo que planejamos não
acontece imediatamente, pois os resultados das coisas estão nas mãos de
Deus. Esta a razão por que São Paulo ora ao Senhor para promover sua
viagem (Rom 1.10). E esta é também a razão pela qual o livre arbítrio é
fraco.
Nas coisas externas há liberdade.
Todavia, ninguém nega que nas coisas externas tanto os regenerados como
os não-regenerados gozam de livre arbítrio. O homem tem em comum com os
outros animais (aos quais ele não é inferior) esta natureza de querer
umas coisas e não querer outras. Assim, ele pode falar ou ficar calado,
sair de sua casa ou nela permanecer, etc. Contudo, mesmo aqui deve-se
ver sempre o poder de Deus, pois essa foi a causa por que Balaão não
pôde ir tão longe quanto desejava (Num, cap. 24), e Zacarias, ao voltar
do templo, não podia falar como era seu desejo (Luc, cap. 1).
Heresias.
Nesta questão, condenamos os maniqueus, os quais afirmam que o início
do mal, para o homem bom, não foi de seu livre arbítrio. Condenamos,
também, os pelagianos, que afirmam que um homem mau tem suficiente livre
arbítrio para praticar o bem que lhe é ordenado. Ambos são refutados
pela Santa Escritura, que diz aos primeiros: “Deus fez o homem reto”; e
aos segundos: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis
livres” (João 8.36).
10. Da predestinação de Deus e da eleição dos santos
Deus nos elegeu pela graça.
Deus, desde a eternidade, livremente e movido apenas pela sua graça,
sem qualquer respeito humano, predestinou ou elegeu os santos que ele
quer salvar em Cristo, segundo a palavra do apóstolo: “Ele nos escolheu
nele antes da fundação do mundo” (Ef 1.4); e de novo: “... que nos
salvou, e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas
conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo
Jesus antes dos tempos eternos, e manifestada agora pelo aparecimento de
nosso Salvador Cristo Jesus” (II Tim 1.9-10).
Somos eleitos ou predestinados em Cristo.
Portanto, não foi sem medo, embora não por qualquer mérito nosso, mas
em Cristo e por causa de Cristo que Deus nos elegeu, para que aqueles
que agora se encontram enxertados em Cristo pela fé também sejam
eleitos, mas sejam rejeitados aqueles que estão fora de Cristo, segundo a
palavra do apóstolo: “Examinai-vos a vós mesmos se realmente estais na
fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não reconheceis que Jesus Cristo está em
vós? Se não é que já estais reprovados” (II Co 13.5).
Somos eleitos para um fim determinado.
Finalmente, os santos são eleitos em Cristo por Deus para um fim
determinado, que o apóstolo esclarece, quando diz: “Ele nos escolheu
nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis
perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de
filhos, por meio de Jesus Cristo... para o louvor da glória de sua
graça” (Ef 1.4-6).
Devemos bem esperar acerca de todos.
E, embora Deus conheça os que são seus, e nalgum lugar se faça menção
do reduzido número dos eleitos, devemos, contudo, bem esperar acerca de
todos, e não julgar apressadamente nenhum homem como rejeitado. São
Paulo diz aos filipenses: “Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo
de vós” (ora, ele fala de toda a Igreja dos filipenses), “pela vossa
cooperação no Evangelho... Estou plenamente certo de que aquele que
começou boa obra em vós há de completá-la até o dia de Cristo Jesus”
(Fil 1.3-7).
Sobre se são poucos os eleitos.
E, quando perguntaram ao Senhor se eram poucos os que seriam salvos,
ele não respondeu que poucos ou muitos seriam salvos ou condenados, mas
antes exortou todo homem a “esforçar-se por entrar pela porta estreita”
(Luc 13.24). É como se dissesse: “Não vos compete inquirir com muita
curiosidade acerca dessas questões, mas antes esforçar-vos por entrar no
céu pelo caminho estreito”.
O que deve ser condenado nesse caso.
Por isso, não aprovamos as afirmações ímpias de alguns que dizem:
“Poucos são os eleitos, e, como eu não sei se estou no número desses
poucos, não me privarei dos prazeres”. Outros dizem: “Se sou
predestinado ou eleito por Deus, nada me impedirá da salvação, já
certamente determinada, seja o que for que eu fizer. Mas, se estou no
número dos rejeitados, nenhuma fé ou arrependimento poderá valer-me,
visto que a determinação de Deus não pode ser mudada. Portanto, todas as
doutrinas e advertências são inúteis”. Mas o ensino do apóstolo
contradiz estes homens: “O servo do Senhor deve ser apto para
instruir... disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa
de que Deus lhes conceda não só o arrependimento ... livrando-se eles
dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele, para cumprirem a
sua vontade” (II Tm 2.24-26).
As admoestações não são inúteis pelo fato de a salvação vir da eleição.
Santo Agostinho também mostra que devem ser pregadas tanto a graça da
livre eleição e predestinação como também as admoestações e doutrinas da
salvação (De Bono Perseverantiae, cap. 14 ss),
Se somos eleitos.
Condenamos, portanto, aqueles que, fora de Cristo, perguntam se são
eleitos, e o que sobre eles decretou Deus antes de toda a eternidade,
pois deve ser ouvida a pregação do Evangelho e deve-se crer nele, e
deve-se ter como fora de dúvida que, se alguém crê e está em Cristo, é
eleito. Com efeito, o Pai nos revelou em Cristo o eterno propósito da
sua predestinação, como ainda há pouco expus, pelo que diz o apóstolo,
em II Tim 1.9-10. Deve-se, pois, ensinar e antes de tudo considerar quão
grande amor do Pai para conosco nos foi revelado em Cristo. Devemos
ouvir o que o próprio Senhor diariamente nos prega no Evangelho, como
ele nos chama e diz: “Vinde a mim todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mat 11.28); “Deus amou o mundo de
tal maneira que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crê
não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). E ainda: “Não é a
vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos” (Mat
18.14).
Seja, pois, Cristo o espelho, no qual contemplemos a nossa predestinação.
Teremos um testemunho bastante claro e seguro de que estamos inscritos
no Livro da Vida, se tivermos comunhão com Cristo, e se ele for nosso e
nós dele em verdadeira fé.
Tentação sobre a predestinação.
Na tentação sobre a predestinação, que é, talvez, mais perigosa do que
qualquer outra, console-nos o fato de que as promessas de Deus são
universais para os fiéis, pois ele diz: “Pedi, e dar-se-vos-á... Pois
todo o que pede recebe” (Luc 11.9-10). É, finalmente, o que pedimos com
toda a Igreja de Deus: “Pai nosso que nos céus” (Mat 6.9). Fomos
enxertados no corpo de Cristo, pelo batismo, e da sua carne e do seu
sangue nos alimentamos freqüentemente em sua Igreja, para a vida eterna.
Fortalecidos por essas bênçãos, segundo o preceito de São Paulo
recebemos ordem de operar a nossa salvação com temor e tremor.
11. De Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, único Salvador do mundo
Cristo é verdadeiro Deus.
Além disso, ensinamos que o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo,
foi, desde a eternidade, predestinado ou pré-ordenado pelo Pai para ser o
Salvador do Mundo. E cremos que ele nasceu, não somente quando da
Virgem Maria assumiu a carne, nem apenas antes que se lançassem os
fundamentos do mundo, mas antes de toda a eternidade e certamente pelo
Pai, de um modo inexprimível. Isaías diz: “E da sua linhagem quem dela
cogitou?” (cap. 53.8). E Miquéias diz “E cujas origens são desde os
tempos antigos, desde os dias da eternidade” (Miq 5.2). Também São João
disse no Evangelho: “No principio era o Verbo, e o Verbo estava com
Deus, e o Verbo era Deus”, etc. (cap. 1.1). Portanto, quanto à sua
divindade, o Filho é co-igual e consubstancial com o Pai; verdadeiro
Deus (Fil 2.11), não de nome ou por adoção ou por qualquer dignidade,
mas em substância e natureza, como disse o apóstolo São João: “Este é o
verdadeiro Deus e a vida eterna” (I João 5.20). São Paulo também diz: “A
quem constituiu herdeiro de todas as cousas, pelo qual também fez o
universo. Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu
ser, sustentando todas as cousas pela palavra do seu poder” (Heb I.2
ss). E no Evangelho o Senhor mesmo também disse: “Glorifica-me, ó Pai,
contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse
mundo” (João 17.5). Em outro lugar do Evangelho também está escrito: “Os
judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque... também dizia que Deus
era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (João 5.18).
As seitas.
Abominamos, pois, a doutrina ímpia de Ário e de todos os arianos contra
o Filho de Deus, e especialmente as blasfêmias do espanhol, Miguel
Serveto, e de todos os servetanos, que Satanás, por meio deles, retirou
do inferno, por assim dizer, e vai espalhando por todo o mundo,
audaciosa e impiamente.
Cristo é verdadeiro homem, tendo verdadeira carne.
Cremos também e ensinamos que o eterno Filho do eterno Deus se fez
Filho do homem, da semente de Abraão e David, não com concurso carnal do
homem, como diz Ébion, mas concebido do Espírito Santo com toda a
pureza e nascido da sempre virgem Maria, como a história evangélica
cuidadosamente nos explica (Mat, cap.1). E São Paulo diz: “Ele não
assumiu a natureza de anjos, mas a da semente de Abraão”. Também o
apóstolo São João diz que todo aquele que não crê que Jesus Cristo veio
em carne não é de Deus. Portanto, a carne de Cristo não era nem
imaginária nem trazido do céu, como erradamente sonhavam Valentino e
Márcion.
Alma racional em Cristo.
Além disso, nosso Senhor Jesus Cristo não possuiu uma alma desprovida
de percepção e de razão, como pensava Apolinário, nem carne sem alma,
como ensinava Eudômio, mas alma com sua razão e carne com seus sentidos,
pelos quais por ocasião de sua paixão ele suportou dores reais, como
ele mesmo testifica quando diz: “A minha alma está profundamente triste
até à morte” (Mat 26.38); “Agora está angustiada a minha alma” (João
12.27).
Duas naturezas em Cristo.
Reconhecemos, portanto, duas naturezas ou substâncias, a divina e a
humana, num e no mesmo Senhor nosso Jesus Cristo (Heb, cap. 2). E
dizemos que elas estão ligadas e unidas uma com a outra de tal modo que
não foram absorvidas, ou confundidas, ou misturadas, mas unidas ou
integradas numa pessoa - com as propriedades das naturezas intactas e
permanentes.
Não dois, mas um só Cristo.
Assim, não adoramos dois, mas um Cristo, o Senhor, um verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, segundo a natureza divina, consubstancial com o Pai, e
segundo a natureza humana, consubstancial com os homens e semelhante a
nós em todas as coisas, excepto no pecado (Heb 4.15).
As seitas.
Certamente abominamos o dogma nestoriano, que de um Cristo faz dois e
dissolve a união da Pessoa. Semelhantemente, execramos totalmente a
loucura de Eutiques e dos monotelitas ou monofisitas, que destrói a
propriedade da natureza humana.
A natureza divina de Cristo não sofreu e a humana não está em toda a parte.
Portanto, de modo nenhum ensinamos que a natureza divina em Cristo
sofreu, ou que Cristo em sua natureza humana ainda está neste mundo e
ainda em toda parte. Pois nem pensamos nem ensinamos que a realidade do
corpo de Cristo cessou depois de sua glorificação, ou que foi deificado e
deificado de tal modo que ele tenha deposto as suas propriedades com
respeito ao corpo e à alma, e estes se tenham mudado inteiramente em uma
natureza divina e passado a ser uma substância una.
As seitas.
Por isso, de maneira nenhuma aprovamos ou aceitamos as argúcias sem
argúcia, intrincadas e obscuras, de Schwenkfeldt e de semelhantes
dizedores de sutilezas, nem suas dissertações pouco consistentes sobre
essa questão, nem somos schwenkfeldianos.
Nosso Senhor verdadeiramente sofreu.
Cremos, além disso, que nosso Senhor Jesus Cristo verdadeiramente
sofreu e morreu por nós em carne, como diz São Pedro (I Ped 4.1).
Abominamos a impiíssima loucura dos jacobitas e de todos os turcos, que
blasfemam do sofrimento do Senhor. Ao mesmo tempo, não negamos que o
Senhor da glória foi crucificado por nós, segundo as palavras de São
Paulo (I Co 2.8).
Comunicação de propriedades de linguagem.
Aceitamos e aplicamos pia e respeitosamente a comunicação de
propriedades de linguagem derivada da Escritura e usada por toda a
antiguidade para explicar e reconciliar passagens aparentemente
contraditórias.
Cristo verdadeiramente ressuscitou dos mortos.
Cremos e ensinamos que o mesmo Jesus Cristo nosso Senhor, em sua
verdadeira carne na qual fora crucificado e morrera, ressuscitou dos
mortos, e que não foi outra carne que ressuscitou, mas a que foi
sepultada, nem foi o espírito que subiu ao alto em vez da carne, mas ele
reteve seu verdadeiro corpo. Portanto, ainda que os seus discípulos
pensassem ver o espírito do Senhor, ele lhes mostrou as mãos e os pés
marcados realmente com os sinais dos cravos e das feridas, e ajuntou:
“Vede as minhas mãos e os meus pés, que sou eu mesmo, apalpai-me e
verificam, porque um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu
tenho” (Luc 24-39).
Cristo verdadeiramente subiu ao céu.
Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo, em sua própria carne, subiu acima
de todos os céus visíveis ao supremo céu, isto é, à habitação de Deus e
dos bem-aventurados, à destra de Deus o Pai. Embora isso signifique
participação igual em glória e majestade, considera-se, contudo, também
como um lugar definido, acerca do qual o Senhor, falando no Evangelho,
diz: “Vou preparar-vos lugar” (João 14.2). O apóstolo São Pedro também
diz: “Ao qual é necessário que o céu receba até aos tempos da
restauração de todas as cousas” (Act 3.21). E do céu o mesmo Cristo
retomará para o juízo, quando a impiedade no mundo estiver no seu máximo
e quando o Anticristo, tendo corrompido a verdadeira religião, tiver
envolvido todas as coisas com superstição e impiedade, e tiver
cruelmente assolado a Igreja com sangue e fogo (Dn, cap. 11). Mas Cristo
voltará para reclamar os seus, e pela sua vinda destruir o Anticristo e
julgar os vivos e os mortos (Act 17,31). s mortos ressuscitarão (I Tes
4.14 ss), e os que naquele dia (que é desconhecido de todas as criaturas
- Mc 13.32) estiverem vivos serão transformados “num abrir e fechar de
olhos”, e todos os fiéis serão arrebatados ao encontro de Cristo nos
ares, para assim entrarem com ele nas benditas mansões e viverem para
sempre (I Co 15.51 ss). Mas os incrédulos ou os ímpios descerão com os
demônios para o inferno a fim de arderem para sempre e nunca serem
libertados dos tormentos (Mat 25.46).
As seitas.
Condenamos, portanto, todos os que negam a ressurreição real da carne
(II Tim 2.18), ou que, com João de Jerusalém, contra quem escreveu São
Jerônimo, não pensem corretamente acerca dos corpos glorificados.
Condenamos também os que ensinam que os demônios e todos os ímpios serão
um dia salvos, e que haverá um fim dos castigos. O Senhor declarou com
clareza: “Onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga” (Mc 9.44).
Condenamos, além disso, os sonhos judaicos de que haverá uma idade áurea
na terra antes do Dia do Juízo, e que os piedosos, tendo subjugado
todos os seus inimigos ímpios, entrarão na posse de todos os reinos do
mundo. Pois a verdade evangélica em Mat, caps. 24 e 25, e Lucas, cap.
18, e o ensino apostólico em II Tes, cap. 2, e II Tim, caps. 3 e 4,
apresentam coisa inteiramente diversa.
O fruto da morte e ressurreição de Cristo.
Além do mais, pela sua paixão e morte e tudo o que, em sua carne e na
sua vinda, ele fez e suportou por nossa causa nosso Senhor reconciliou o
Pai celestial com todos os fiéis, expiou o pecado, desarmou a morte,
arruinou a condenação e o inferno, e, pela sua ressurreição dos mortos,
trouxe de novo e restituiu a vida e a imortalidade. Ele é a nossa
justiça, a nossa vida e ressurreição, em uma palavra, a plenitude e
perfeição de todos os fiéis, a salvação e a mais completa suficiência. O
apóstolo diz: “Aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude”, e
“Viestes à plenitude da vida nele” (Cl caps. l e 2).
Jesus Cristo é o único Salvador do mundo, e o verdadeiro Messias esperado.
Ensinamos e cremos que este Jesus Cristo, nosso Senhor, é o único e
eterno Salvador do gênero humano, e também do mundo inteiro, em quem
pela fé se salvaram todos os que antes da Lei, sob a Lei e sob o
Evangelho foram salvos, e em quem se salvarão todos os que ainda vierem a
salvar-se até o fim do mundo. É o próprio Senhor quem diz no Evangelho:
“O que não entra pela porta no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra
parte, esse é ladrão e salteador ... Eu sou a porta das ovelhas” (João
10.1 e 7). E também em outro lugar, no mesmo Evangelho: “Abraão... viu o
meu dia e regozijou-se” (cap. 8.56). O apóstolo São Pedro também diz:
“Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum
outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos
salvos”. Cremos, portanto, que seremos salvos mediante a graça de nosso
Senhor Jesus Cristo, como nossos pais o foram (Act 4.12; 10.43; 15.1 1).
São Paulo também diz: “Todos eles comeram de um só manjar espiritual, e
beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra
espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo” (I Co 10.3 ss). E assim
lemos o que João diz: Cristo era o “Cordeiro que foi morto, desde a
fundação do mundo” (Apoc 13.8), e João Baptista testificou que Cristo é
“o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1.29). Eis por
que professamos e pregamos, com toda a clareza, que Jesus Cristo é o
único Redentor e Salvador do mundo, o Rei e o Sumo - Sacerdote, o
verdadeiro Messias esperado, aquele santo e bendito que todos os tipos
da lei e todos os vaticínios dos profetas prefiguraram e prometeram; e
que Deus o designou anteriormente e no-lo enviou, de modo que não
devemos esperar nenhum outro. Nem nos resta agora outra coisa que darmos
a Cristo toda a glória, nele crermos, somente nele descansarmos,
desprezando e rejeitando todas as demais ajudas na vida. Com efeito,
decaíram da graça e tornam Cristo vão para si todos os que buscam a
salvação em qualquer outra coisa que não somente em Cristo (Gal 5.4).
Os credos recebidos de quatro concílios.
E, para dizer muito em poucas palavras, cremos de todo o coração, e
livremente confessamos à viva voz, tudo o que foi definido com
fundamento nas Escrituras Sagradas a respeito do mistério da Encarnação
de nosso Senhor Jesus Cristo, compreendido nos Credos e decretos dos
quatro primeiros venerandos sínodos reunidos em Niceia, Constantinopla,
Éfeso e Calcedônia - juntamente com o Credo do bem-aventurado Atanásio, e
todos os credos similares; e condenamos tudo o que for contrário a
eles.
As seitas.
E dessa maneira mantemos inviolada ou intacta a fé cristã, ortodoxa e
católica, sabendo que nada se contêm nos credos atrás citados que não
seja conforme com a Palavra de Deus, e que não contribua, ao mesmo
tempo, para uma exposição pura da fé.
12. Da lei de Deus
A vontade de Deus nos é exposta na lei de Deus.
Ensinamos que a vontade de Deus nos é exposta na Lei de Deus: o que ele
quer ou não quer que façamos, o que é bom e justo, ou o que é mau e
injusto. Portanto, confessamos que a Lei é boa e santa.
A lei natural.
Esta lei foi escrita nos corações dos homens pelo dedo de Deus (Rom
2.15), e é chamada a lei natural; foi também esculpida pelo dedo de Deus
nas duas tábuas de Moisés e mais pormenorizadamente exposta nos livros
de Moisés (Êx 20.1 ss; Deut 5.6 ss). Para maior clareza, distinguimos: a
lei moral contida no Decálogo ou nas duas Tábuas e expostas nos livros
de Moisés; a lei cerimonial, que determina as cerimônias e o culto de
Deus; e a lei judiciária, que versa questões políticas e domésticas.
A lei é completa e perfeita.
Cremos que toda a vontade de Deus e todos os preceitos necessários a
cada esfera da vida são nesta lei ensinados com toda a plenitude. De
outro modo o Senhor não nos teria proibido de adicionar-lhe ou de
subtrair-lhe qualquer coisa; nem nos teria mandado andar num caminho
reto diante desta Lei, sem dela nos declinarmos para a direita ou para a
esquerda (Deut 4.2; 12.32, 5.32, cf. Num 20-17 e Deut 2.27).
Porque foi dada a lei.
Ensinamos que esta Lei não foi dada aos homens para que fôssemos
justificados pela sua observância, mas antes para que, pelo seu ensino,
conhecêssemos nossa fraqueza, nosso pecado e condenação e, perdendo a
confiança em nossas forças, nos convertêssemos a Cristo pela fé. O
apóstolo diz claramente: “A Lei suscita a ira”; “pela Lei vem o pleno
conhecimento do pecado” (Rom 4.15; 3.20); “porque, se fosse promulgada
uma Lei que pudesse dar vida, a justiça, na verdade seria procedente da
Lei; mas a Escritura encerrou tudo sob o pecado, para que mediante a fé
em Jesus Cristo fosse a promessa concedida aos que crêem... De maneira
que a Lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que
fôssemos justificados por fé” (Gal 3.21 ss).
A carne não cumpre a lei.
Ninguém poderia ou pode satisfazer a Lei de Deus ou cumpri-la, por
causa de fraqueza da nossa carne que adere e permanece em nós até nosso
último suspiro. Outra vez diz o apóstolo: “O que fora impossível à Lei,
no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio
Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado” (Rom
8.3). Portanto, Cristo é o aperfeiçoador da Lei e o nosso cumprimento
dela (Rom 10.4), o qual, com o fim de remover a maldição da Lei, foi
feito maldição por nós (Gal 3.13). Assim, ele nos comunica, pela fé, o
seu cumprimento da Lei, e a sua justiça e obediência nos são imputadas.
Até que ponto foi a lei ab-rogada.
A Lei de Deus é, pois, ab-rogada na medida em que ela não mais nos
condena, nem opera ira em nós. Estamos debaixo da graça e não debaixo da
Lei. Além disso, Cristo cumpriu todas as formas da Lei. Daí, vindo o
corpo, cessaram as sombras, de modo que agora em Cristo temos a verdade e
toda a plenitude. Contudo, de modo nenhum rejeitamos por isso a Lei.
Lembramo-nos das palavras do Senhor, que disse: “Não vim para revogar,
vim para cumprir” (Mat 5.17). Sabemos que na Lei nos são ensinados os
padrões de virtudes e vícios. Sabemos que a Lei escrita, quando
explicado pelo Evangelho, é útil à Igreja, e que, portanto, sua leitura
não deve ser excluída da Igreja. E, embora a face de Moisés estivesse
recoberta com um véu, no entanto o apóstolo diz que o véu foi retirado e
abolido por Cristo.
As seitas. Condenamos tudo o que os heréticos, antigos e modernos, ensinaram contra a Lei.
13. Do Evangelho de Jesus Cristo, das promessas, do espírito e da letra
Os antigos tiveram promessas evangélicas.
O Evangelho opõe-se à Lei. A Lei opera a ira e anuncia a maldição,
enquanto o Evangelho prega a graça e a bênção. São João diz: “Porque a
Lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por
meio de Jesus Cristo” (João 1.17). Não obstante, é perfeitamente certo
que aqueles que viveram antes da Lei e sob a Lei não estavam totalmente
destituídos do Evangelho. Tinham insignes promessas evangélicas, tais
como estas: “A semente da mulher te ferirá a cabeça” (Gen 3.15). “Nela
serão benditas todas as nações da terra” (Gen 22.18). “O cetro não se
arredará de Judá... até que venha Silo” (Gen 49.10). “O Senhor teu Deus
te suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos” (Deut 18.15; At
3.22) etc.
Promessas dúplices.
Reconhecemos que duas espécies de promessas foram reveladas aos
antigos, como também a nós. Algumas eram de coisas presentes ou
terrenas, tais como as promessas da Terra de Canaã e de vitórias, e
como, ainda hoje, as promessas do pão quotidiano. Outras eram naquela
ocasião, e são ainda agora, de coisas celestiais e eternas, como a graça
divina, a remissão de pecados, a vida eterna por meio da fé em Jesus
Cristo.
Os patriarcas tiveram promessas não só carnais, mas também espirituais.
Os antigos não tiveram, em Cristo, apenas promessas externas ou
terrenas, mas também espirituais e celestiais. São Pedro diz: “Foi a
respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais
profetizaram acerca da graça a vós outros destinada” (I Pe 1.10). Donde
também o apóstolo São Paulo diz: “O Evangelho de Deus... foi... outrora
prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras”
(Rom 1.2). Por isso é bem claro que os antigos não foram inteiramente
destituídos de todo o Evangelho.
Que é propriamente o Evangelho? E,
embora nossos pais tivessem dessa maneira, nos escritos dos profetas, o
Evangelho, pelo qual alcançaram a salvação em Cristo pela fé, contudo, o
que se chama propriamente “Evangelho” são as notícias alegres e felizes
pelas quais, primeiro por João Baptista, depois por Cristo, o Senhor, e
depois pelos apóstolos e seus sucessores, se anunciou aos homens que
Deus já realizou o que ele prometera, desde o princípio do mundo, e nos
mandou, ou melhor nos deu o seu único Filho e nele a reconciliação com o
Pai, a remissão dos pecados, toda a plenitude e a vida eterna.
Portanto, a história apresentada pelos quatro evangelistas, explicando
como isso foi realizado ou cumprido por Cristo, o que Cristo ensinou e
praticou, e que aqueles que crêem nele têm toda a plenitude, e
exatamente o que se chama “Evangelho”. A Pregação e os escritos
apostólicos, nos quais os apóstolos nos expõem como o Filho nos foi dado
pelo Pai, e nele tudo o que diz respeito à vida e à salvação, são
também o que se chama corretamente “doutrina evangélica”, de modo que
ainda hoje, se sinceramente pregada, não perde o direito a tão preclara
designação.
Do espírito e da letra.
Essa mesma pregação do Evangelho é também chamada pelo apóstolo “o
espírito” e “o ministério do espírito”, porque pela fé ela se torna
eficaz e viva nos ouvidos, ou melhor, nos corações dos crentes
iluminados pelo Espírito Santo (II Co 3.6). A letra, que se opõe ao
Espírito, significa tudo o que é externo, mas especialmente a doutrina
da Lei, que, sem o Espírito e a fé, produz ira e excita o pecado nas
mentes daqueles que não têm uma fé viva. Por isso o apóstolo chama a
isso «o ministério da morte». Aqui é pertinente a palavra do apóstolo:
“A letra mata, mas o Espírito vivifica”. Falsos apóstolos também
pregavam um Evangelho corrompido, misturando-lhe a Lei, como se sem a
Lei Cristo não pudesse salvar.
As seitas.
Assim, afirmavam os ebionitas, descendentes espirituais do herege
Ébion, e os nazaritas, que anteriormente eram chamados mineus. A todos
estes nós condenamos, e pregamos ao mesmo tempo o puro Evangelho,
ensinando que os crentes são justificados só pelo Espírito, e não pela
Lei. Uma exposição mais detalhada deste assunto virá sob o título de
“justificação”.
O ensino do Evangelho não é novo, mas muito antigo.
Embora o ensino do Evangelho, comparado com o dos fariseus sobre a Lei,
tenha parecido ser uma nova doutrina quando pregado por Cristo a
primeira vez, o que também Jeremias profetizou a respeito do Novo
Testamento, contudo, ele, na realidade não só era como ainda é, uma
velha doutrina (que hoje ela é chamada nova pelos papistas, quando
comparada com a doutrina agora recebida entre eles), mas na verdade é a
mais antiga de todas no mundo. Com efeito Deus predestinou desde a
eternidade salvar o mundo por Cristo, e manifestou ao mundo, através do
Evangelho, esta sua predestinação e o seu conselho eterno (II Tim 2.9
ss). Disso é evidente que a religião e a doutrina evangélica, entre
quantas já existiram, existem e virão a existir, é a mais antiga de
todas. Por isso, afirmamos que todos os que dizem que a religião e a
doutrina evangélica é uma fé surgida recentemente, e que não tem mais
que trinta anos de existência, erram vergonhosamente e falam coisas
indignas do conselho eterno de Deus. A eles se aplica a palavra de
Isaías, o profeta: “Ai dos que ao mal chamam bem, que fazem da
escuridade luz, e da luz escuridade; põem o amargo por doce, e o doce
por amargo!” (Is 5.20).
14. Do arrependimento e da conversão do homem
A doutrina do arrependimento está ligada ao Evangelho.
Pois assim diz o Senhor no Evangelho: “Que em seu nome se pregasse
arrependimento para remissão de pecados a todas as nações” (Luc 24.47).
Que é arrependimento? Por
arrependimento entendemos uma volta atrás da mente no pecador provocado
pela Palavra do Evangelho e pelo Espírito Santo, e recebida pela
verdadeira fé, com o que o pecador imediatamente reconhece a sua
corrupção inata e todos os seus pecados denunciados pela Palavra de
Deus; e entristece-se por eles em seu coração, e não apenas os lamenta e
francamente confessa diante de Deus com um sentimento de vergonha, mas
também com indignação os abomina; cuidando agora zelosamente de
emendar-se, num esforço constante em busca da inocência e da virtude, no
qual esforço se exercita santamente em todo o resto de sua vida.
O arrependimento é verdadeira conversão a Deus. E
este é o verdadeiro arrependimento, uma sincera volta para Deus e para
todo o bem, e uma profunda aversão ao Diabo e a todo o mal.
O arrependimento é dom de Deus.
Dizemos expressamente que este arrependimento é puro dom de Deus e não
uma realização de nossas forças. O apóstolo ordena a um fiel ministro
que diligentemente instrua aqueles que se opõem à verdade, “na
expectativa de que Deus lhes conceda o arrependimento para conhecerem
plenamente a verdade” (II Tim 2.25). Lamenta os pecados cometidos.
Aquela mulher que lavou os pés do Senhor com suas lágrimas, e São Pedro,
que chorou amargamente e lamentou ter negado o Senhor (Luc 7.38; 22.62)
mostram claramente como deve ser o espírito de um homem arrependido,
lamentando seriamente os pecados que cometeu. Confessa os pecados a
Deus. E o filho pródigo e o publicano no Evangelho, quando comparados
com o fariseu, apresentam-nos as fórmulas mais adequadas de confessar os
nossos pecados a Deus. O primeiro disse: “Pai, pequei contra o céu e
diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como
um dos teus trabalhadores” (Luc 15.18 ss). E o segundo, não ousando
erguer os olhos ao céu, bate no peito, dizendo: “Ó Deus, sê propício a
mim, pecador!” (cap. 18.13). E não temos duvida de que foram aceitos em
graça por Deus, pois o apóstolo São João diz: “Se confessarmos os nossos
pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar
de toda injustiça. Se dissermos que não temos cometido pecado,
fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós” (I João 1.9 ss).
Confissão e absolvição sacerdotais.
Cremos que é suficiente esta sincera confissão feita só a Deus, ou
particularmente entre Deus e o pecador, ou publicamente na Igreja quando
se faz a confissão geral de pecados, e que para se obter perdão de
pecados não é necessário ninguém confessar seus pecados a um sacerdote,
sussurrando-lhe aos ouvidos, para dele ouvir em troca a absolvição, com a
imposição das mãos, porque não existe nenhum mandamento nem exemplo
disso Santas Escrituras. David testifica e diz: “Confessei-te o meu
pecado e a minha iniqüidade não mais ocultei. Disse: Confessarei ao
Senhor as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniqüidade do meu
pecado” (Sal 32.5). E o Senhor, ao ensinar-nos a orar e ao mesmo tempo a
confessar nossos pecados, disse: “Pai nosso que estás nos céus...
perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos
devedores” (Mat 6.9 e 12). Portanto, é necessário que confessemos nossos
pecados a Deus, nosso Pai, e nos reconciliemos com nosso próximo, se o
ofendemos. Quanto a esse tipo de confissão, o apóstolo São Tiago diz:
“Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros” (Tiag 5.16). Se,
contudo, alguém se acha acabrunhado pelo peso de seus pecados e por
tentações que o põem perplexo, e procurar conselho, instrução e conforto
individualmente, ou de um ministro da Igreja, ou de um outro irmão
instruído na Lei de Deus, não desaprovamos. Por outro lado, aprovamos
plenamente a confissão de pecados geral e pública, que usualmente se
realiza na Igreja e em reuniões de culto, como notamos acima, tanto mais
que isso está de acordo com a Escritura.
Das chaves do Reino do Céu.
Quanto às chaves do Reino de Deus, que o Senhor entregou aos apóstolos,
muitos tagarelam inúmeras coisas espantosas, e com elas forjam espadas,
lanças, cetros e coroas, e pleno poder sobre os maiores reinos, e,
afinal, sobre almas e corpos. Julgando de modo singelo, segundo a
Palavra do Senhor, dizemos que todos os que são legitimamente chamados
ministros possuem e exercem as chaves, ou o uso das chaves, quando
anunciam o Evangelho; isto é, quando ensinam, exortam, confortam,
repreendem e exercem a disciplina sobre o povo confiado aos seus
cuidados.
Abrir e fechar (o Reino).
Desse modo abrem o Reino dos Céus aos obedientes e o fecham aos
desobedientes. O Senhor prometeu essas chaves aos apóstolos em Mat,
cap.16, e as deu em João, cap. 20, Marcos, cap. 16 e Lucas, cap.24,
quando enviou seus discípulos e os mandou pregar o Evangelho a todo o
mundo, e perdoar pecados.
O ministério da reconciliação.
Na carta aos Coríntios diz o apóstolo que o Senhor deu o ministério da
reconciliação aos seus ministros (II Co 5.18 ss). E ele explica qual é
ele, dizendo que é a pregação ou o ensino da reconciliação. E, tornando
suas palavras ainda mais claras, acrescenta que os ministros de Cristo
desempenham o ofício de embaixadores em nome de Cristo, como se Deus
mesmo por meio deles exortasse o povo a se reconciliar com Deus, sem
dúvida nenhuma pela fiel obediência. Portanto, exercem o poder das
chaves quando persuadem os homens à fé e ao arrependimento. Assim,
reconciliam os homens com Deus.
Os ministérios proclamam a remissão de pecados.
Assim, eles perdoam pecados. Abrem, assim, o Reino dos Céus e nele
introduzem os crentes: mui diferentemente daqueles de quem o Senhor fala
no Evangelho: “Ai de vós, intérpretes da lei! porque tomastes a chave
da ciência; contudo, vós mesmos não entrastes e impedistes os que
estavam entrando” (Luc 11.52).
Como os ministros absolvem.
Os ministros, portanto, absolvem correta e eficazmente quando pregam o
Evangelho de Cristo e nele a remissão de pecados, que é prometida a todo
aquele que crê, assim como cada um é batizado, e quando testificam que
ela pertence a cada um particularmente. E não julgamos que esta
absolvição se torne mais eficaz por ser murmurada no ouvido de alguém ou
individualmente sobre a cabeça de alguém. Pensamos, contudo, que a
remissão de pecados pelo sangue de Cristo deve ser diligentemente
anunciada, e que cada um deve ser avisado de que o perdão de pecados lhe
pertence.
Diligência na renovação da vida.
Ademais os exemplos do Evangelho ensinam-nos quão vigilantes e
diligentes devem ser os arrependidos no esforço de renovação de vida e
na mortificação do homem velho e despertamento do homem novo. O Senhor
disse ao paralítico que ele curara: “Olha que já estás curado; não
peques mais, para que não te suceda cousa pior” (João 5.14). De igual
modo, disse à adúltera a quem libertou: “Vai, e não peques mais” (cap.
8.11). Sem dúvida, por estas palavras ele não quis dizer que o homem,
alguma vez, enquanto ainda vive nesta carne, não peque; mas recomenda
vigilância cuidadosa e diligência para que nos esforcemos de todos os
modos e supliquemos a Deus em nossas orações para não cairmos nos
pecados dos quais como que ressuscitamos, e para não sermos vencidos
pela carne, pelo mundo e pelo Diabo. Zaqueu, o publicano, recebido pelo
Senhor em graça, exclama no Evangelho: “Senhor, resolvo dar aos pobres a
metade dos meus bens; e, se nalguma cousa tenho defraudado alguém,
restituo quatro vezes mais” (Luc 19.8). Portanto, do mesmo modo pregamos
que restituição e misericórdia, e, até, esmolas, são necessárias para
aqueles que verdadeiramente se arrependem, e exortamos todos os homens
em toda parte com as palavras do apóstolo: “Não reine, portanto, o
pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões;
nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado como
instrumentos de iniqüidade; mas oferecei-vos a Deus como ressurrectos
dentre os mortos, e os vossos membros a Deus como instrumentos de
justiça” (Rom 6.12 ss).
Erros.
Por isso, condenamos todas as afirmações ímpias de alguns que fazem mau
uso da pregação do Evangelho e dizem: “É fácil retornar a Deus; Cristo
expiou todos os pecados: é fácil o perdão dos pecados; portanto, que mal
há em pecar? Nem precisamos estar muito preocupados acerca do
arrependimento, etc.” Não obstante, ensinamos sempre que o acesso a Deus
está aberto a todos os pecadores, e que ele perdoa todos os pecados a
todos os que crêem, exceto o pecado contra o Espírito Santo (Mc 3.29).
As seitas. Eis por que condenamos os antigos e modernos novacianos e os cataristas.
Indulgências papais.
Condenamos, de modo especial, a doutrina lucrativa do Papa sobre a
penitência, e contra a sua simonia e as suas indulgências simoníacas
usamos o julgamento de São Pedro com respeito a Simão: “O teu dinheiro
seja contigo para perdição, pois julgaste adquirir por meio dele o dom
de Deus. Não tens parte nem sorte neste ministério, porque o teu coração
não é reto diante de Deus” (At 8.20 ss).
Satisfações.
Não aprovamos também aqueles que pensam que, pelas suas satisfações,
reparam os pecados cometidos. Ensinamos que só Cristo, pela sua morte ou
paixão, é a satisfação, a propiciação ou a expiação de todos os pecados
(Is. cap. 53; I Co 1.30). Contudo, como já dissemos, não cessamos de
insistir na mortificação da carne. Mas acrescentamos que essa
mortificação não deve ser orgulhosamente exaltada perante Deus como
satisfação pelos pecados, mas deve ser realizada humildemente, de
conformidade com a natureza dos filhos de Deus, como uma nova obediência
resultante da gratidão pelo livramento e pela satisfação plena obtidos
pela morte e satisfação do Filho de Deus.
15. Da verdadeira justificação dos fiéis
Que é justificação? Segundo
o apóstolo no seu tratamento da justificação, justificar significa
“perdoar pecados”, “absolver de culpa e castigo”, “receber em graça” e
“declarar justo”. Em sua Epístola aos Romanos o apóstolo diz: “É Deus
quem os justifica. Quem os condenará?” (Rom 8.33). Justificar e condenar
são termos opostos. E nos Atos dos Apóstolos o apóstolo diz: “Tomai,
pois, irmãos, conhecimento de que se vos anuncia remissão de pecados por
intermédio deste; e por meio dele todo o que crê é justificado de todas
as cousas das quais vós não pudestes ser justificados pela lei de
Moisés” (At 13.38 ss). Na Lei, assim como nos Profetas, lemos: “Em
havendo contenda entre alguns, e vierem a juízo, os juizes os julgarão,
justificando ao justo e condenando ao culpado” (Deut 25.1). E em Is.
cap. 5: “Ai dos que... por suborno justificam o perverso”.
Somos justificados por causa de Cristo.
É absolutamente certo que todos nós somos por natureza pecadores e
ímpios, e diante do tribunal de Deus somos acusados de impiedade e réus
de morte, mas, só pela graça de Cristo, sem qualquer mérito nosso ou
consideração por nós, somos justificados, isto é, absolvidos dos pecados
e da morte por Deus, o juiz. Que é, com efeito, mais claro do que o que
disse São Paulo? “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo
justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há
em Cristo Jesus” (Rom 3.23 ss).
A justiça imputada.
Cristo tomou sobre si mesmo e carregou os pecados do mundo, e satisfez a
justiça divina. Portanto, é só por causa dos sofrimentos e ressurreição
de Cristo que Deus é propício para com nossos pecados e não no-los
imputa, mas imputa-nos como nossa a justiça de Cristo (II Co 5.19 ss;
Rom 4.25), de modo que agora não só estamos limpos e purificados de
pecados ou somos santos, mas também, sendo-nos dada a justiça de Cristo,
e sendo nós assim absolvidos do pecado, da morte ou da condenação,
somos finalmente justos e herdeiros da vida eterna. Propriamente
falando, portanto, só Deus justifica, e justifica somente por causa de
Cristo, não nos imputando os pecados, mas a sua justiça.
Somos justificados somente pela fé.
E porque recebemos esta justificação, não por quaisquer obras, mas pela
fé na misericórdia de Deus e em Cristo, por isso ensinamos e cremos,
com o apóstolo, que o pecador é justificado somente pela fé em Cristo e
não pela lei ou por quaisquer obras. O apóstolo diz: “Concluímos, pois,
que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei”
(Rom 3.28). Também: “Porque se Abraão foi justificado por obras, tem de
que se gloriar, porém não diante de Deus. Pois, que diz a Escritura?
Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça... Mas ao que
não trabalha, porém crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é
atribuída como justiça” (Rom 4.2 ss; Gén 15.6). E outra vez: “Porque
pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de
Deus; não de obras, para que ninguém se glorie”, etc. (Ef 2.8 ss).
Portanto, porque a fé recebe Cristo, nossa justiça, e atribui tudo à
graça de Deus em Cristo, por isso a justificação é atribuída à fé,
principalmente por causa de Cristo, e não porque ela seja obra nossa,
visto que é dom de Deus.
Recebemos Cristo pela fé.
Além disso, o Senhor mostra sobejamente que recebemos Cristo pela fé,
em João, cap. 6, onde ele usa comer por crer, e crer por comer. Pois,
como é comendo que recebemos o alimento, assim é crendo que participamos
de Cristo. A justificação não é atribuída parcialmente a Cristo ou à
fé, e parcialmente a nós. Por conseguinte, não compartilhamos do
benefício da justificação em parte por causa da graça de Deus ou de
Cristo, e em parte por causa de nós mesmos, de nosso amor, de nossas
obras ou de nosso mérito, mas atribuímo-lo totalmente à graça de Deus em
Cristo pela fé. Mas também nosso amor e nossas obras não poderiam
agradar a Deus, sendo realizados por homens injustos: por isso, é
necessário que sejamos justos antes que possamos amar ou praticar obras
justas. Somos feitos verdadeiramente justos, como dissemos, pela fé em
Cristo, só pela graça de Deus, que não nos imputa os nossos pecados, mas
a justiça de Cristo, e por isso, ele nos imputa a fé em Cristo como
justiça. Ademais, o apóstolo mui claramente deriva da fé o amor, quando
diz: “Ora, o intuito da presente admoestação visa o amor que procede de
coração puro e de consciência boa e de fé sem hipocrisia” (I Tim 1.5).
Tiago comparado com Paulo.
Por isso, aqui falamos, não de uma fé imaginária, vã e inerte ou morta,
mas de uma fé viva e vivificante, a qual, por apreender a Cristo, que é
vida e vivifica, é viva e se chama “viva” e se mostra viva por obras
vivas. E assim São Tiago não contradiz coisa alguma nesta nossa
doutrina. É que ele fala de uma fé vã e morta, da qual alguns se
vangloriavam, mas que não tinham Cristo vivendo neles pela fé (Tiago
2.14 ss). São Tiago disse que as obras justificam, contudo sem
contradizer o apóstolo (do contrário ele teria de ser rejeitado), mas
mostrando que Abraão provou sua fé viva e justificadora pelas obras. É
isso o que fazem todos os piedosos, confiados, porém, só em Cristo e não
em suas próprias obras. O apóstolo ainda diz: “Já não sou eu quem vive,
mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na carne, vivo
pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim.
Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça é mediante a lei, segue-se
que morre Cristo em vão”, etc. (Gal 2.20).
16. Da fé e das boas obras, e da sua recompensa, e do mérito do homem
Que é a fé? A
fé cristã não é opinião e convicção humana, mas confiança extremamente
firme, e o claro e inabalável assentimento do espírito, e finalmente a
apreensão certíssima da verdade de Deus apresentadas nas Escrituras e no
Credo dos Apóstolos, assim como apreensão do próprio Deus, o supremo
bem, e especialmente da promessa de Deus e de Cristo, que é o
cumprimento de todas as promessas.
A fé é dom de Deus.
Mas esta fé é simplesmente um dom de Deus, que só ele pela sua graça,
segundo a sua medida, concede aos seus eleitos quando, a quem e quanto
ele quer. E ele realiza isso pelo Espírito Santo, pela pregação do
Evangelho e pela oração fiel.
O aumento da fé.
Essa fé pode também ser aumentada por Deus; se assim não fosse, o
apóstolo não teria dito: “Senhor: aumenta-nos a fé” (Luc 17.5). Tudo o
que até aqui temos dito com respeito à fé, os apóstolos ensinaram antes
de nós. São Paulo disse: “Ora, a fé é hypostasis ou a certeza das cousas que se esperam, a elegchos,
isto é, a convicção dos fatos que se não vêem” (Heb 11.1). E noutro
passo ele diz que todas as promessas de Deus são sim por Cristo, e pelo
mesmo Cristo são amém (II Co 1.20). E aos filipenses ele disse que a
eles lhes foi dado crer em Cristo (Fil 1.29). Noutro passo: Deus
concedeu a cada um a medida da fé (Rom 12.3). Noutro ainda: “Nem todos
têm fé” e, “Nem todos obedecem ao Evangelho” (II Tes 3.2; Rom 10.16).
Também Lucas atesta, dizendo: “Creram todos os que haviam sido
destinados para a vida eterna” (At 13.48). Eis porque São Paulo também a
chama “a fé dos eleitos de Deus” (Tit I.1 ), e outra vez: “A fé vem
pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo” (Rom 10.17). Em
outras partes, com freqüência, manda que os homens orem pedindo fé.
Fé eficaz e ativa.
O mesmo apóstolo chama a fé “eficaz” e “que atua pelo amor” (Gal 5.6).
Ela também acalma a consciência e abre um livre acesso para Deus, de
modo que podemos aproximar-nos dele com confiança e dele conseguir o que
é útil e necessário. A mesma (fé) conserva-nos no serviço que devemos a
Deus e ao próximo, fortalece-nos a paciência na adversidade, molda uma
verdadeira confissão e manifesta-a: numa palavra, produz bons frutos de
todas as espécies, e boas obras.
Das boas obras.
Ensinamos que as verdadeiras boas obras nascem de uma fé viva, pelo
Espírito Santo, e são praticadas pelos fiéis segundo a vontade ou a
regra da Palavra de Deus. Ora, o apóstolo São Pedro diz: “Reunindo a
vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o
conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio”, etc. (II Ped 1.5
ss). Dissemos acima que a Lei de Deus, que é sua vontade, estabelece
para nós o padrão de boas obras. E o apóstolo diz: “Pois esta é a
vontade de Deus, a vossa santificação: que vos abstenhais da
prostituição... e que, nesta matéria, ninguém ofenda nem defraude a seu
irmão” (I Tes 4.3 ss).
Obras de escolha humana. E na verdade, obras e cultos que escolhemos por nosso arbítrio não são agradáveis a Deus. A estes São Paulo denominaethelothreskia (CI
2.23). Desses o Senhor diz no Evangelho: “Em vão me adoram, ensinando
doutrinas que são preceitos de homens” (Mat 15.9). Portanto,
desaprovamos tais obras, mas aprovamos e estimulamos aquelas que são da
vontade e de mandado de Deus.
O fim das boas obras.
Essas mesmas obras não devem ser praticadas para, por meio delas,
ganharmos a vida eterna pois, como diz o apóstolo, a vida eterna é dom
de Deus. Nem devem ser elas praticadas por ostentação, o que o Senhor
rejeita em Mat, cap. 6, nem para lucro, o que também ele rejeita em Mat,
cap. 23, mas para a glória de Deus, para adornar a nossa vocação, para
manifestar gratidão a Deus e para benefício do próximo. É assim que
Nosso Senhor diz no Evangelho: “Assim brilhe também a vossa luz diante
dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso
Pai que está nos céus” (Mat S.16). E o apóstolo São Paulo diz: “Que
andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados” (Ef 4.1). Ainda:
“E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em acção, fazei-o em nome
do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Col 3.17); “Não tenha
cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que
é dos outros” (Fil 2.4); “Que aprendam também a distinguir-se nas boas
obras, a favor dos necessitados, para não se tornarem infrutíferos” (Tit
3.14).
As boas obras não são rejeitadas.
Portanto, embora ensinemos com o apóstolo que o homem é justificado
pela graça pela fé em Cristo e não por quaisquer boas obras, contudo não
menosprezamos nem condenamos as boas obras. Sabemos que o homem não foi
criado ou regenerado pela fé, para viver ocioso, mas antes para fazer
sem cessar o que é bom e útil. No Evangelho o Senhor diz que uma árvore
boa produz bom fruto (Mat 12.33), e que aquele que nele permanece produz
muito fruto (João 15.5). O apóstolo diz: “Pois somos feitura dele,
criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão
preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10). E ainda: “O qual a si
mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade, e purificar
para si mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tit
2.14). Condenamos, portanto, todos os que desprezam as boas obras e
vivem a dizer que não precisamos dar atenção a elas e que elas são
inúteis.
Não somos salvos pelas boas obras.
Entretanto, como foi dito acima, não julgamos que somos salvos pelas
boas obras nem que elas sejam necessárias para a salvação, de modo que
sem elas ninguém já tenha sido salvo. Pois somos salvos somente pela
graça e pelo favor de Cristo. As obras procedem, necessariamente, da fé.
A salvação é impropriamente atribuída a elas; ao passo que é com
absoluta propriedade que ela é atribuída à graça. É bem conhecida a
declaração do apóstolo: “E se é pela graça, já não é pelas obras; do
contrário, a graça já não é graça” (Rom 11.6).
As boas obras agradam a Deus.
As obras que praticamos pela fé são agradáveis a Deus e são por ele
aprovadas. Por causa da fé em Cristo, aqueles que praticam boas obras,
que sobretudo pelo Espírito Santo são praticadas pela graça de Deus, são
agradáveis a Deus. São Pedro diz: “Em qualquer nação, aquele que teme e
faz o que é justo lhe é aceitável” (At 10.35). E São Paulo diz: “Não
cessamos de orar por vós... a fim de viverdes de modo digno do Senhor,
para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra” (Col 1.9 ss).
Ensinamos as verdadeiras virtudes, não as falsas e filosóficas.
Assim, zelosamente ensinamos as verdadeiras virtudes, não as falsas ou
filosóficas, as verdadeiramente boas obras e os genuínos serviços de um
cristão. E tanto quanto podemos, diligente e insistentemente as
inculcamos a todos os homens, censurando ao mesmo tempo a desídia e
hipocrisia dos que com os lábios louvam e professam o Evangelho e o
desonram pelas suas vidas ignominiosas. Nesta questão, pomos diante
deles as terríveis ameaças de Deus, bem como as suas ricas promessas e
generosas recompensas - exortando, consolando e repreendendo.
Deus recompensa as boas obras.
Ensinamos que Deus dá uma rica recompensa aos que praticam boas obras,
segundo a palavra do profeta: “Reprime a tua voz de choro... porque há
recompensa para as tuas obras” (Jer 31.16; Is. cap. 4). Também o Senhor
disse no Evangelho: “Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso
galardão nos céus” (Mat 5.12), e “Quem der a beber ainda que seja um
copo de água fria, a um destes pequeninos ... em verdade vos digo que de
modo algum perderá o seu galardão” (cap. 10.42). Atribuímos,
entretanto, esta recompensa, que o Senhor dá, não ao mérito do homem que
a recebe, mas à bondade ou generosidade e veracidade de Deus, que a
promete e a dá, e que, embora não deva nada a ninguém, contudo prometeu
que dará recompensa a seus fiéis adoradores; mas ele lhes dá para que
eles o adorem. Além disso, mesmo nas obras dos santos há muitas coisas
indignas de Deus e muitas mais que são imperfeitas. Mas, porque Deus
recebe em graça e acolhe os que praticam obras por amor a Cristo,
confere-lhes a prometida recompensa. A assim que em outro contexto as
nossas justiças são comparadas a “trapo de imundícia” (Is 64.6). Também o
Senhor diz no Evangelho: “Vós, depois de haverdes feito quanto vos foi
ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que
devíamos fazer” (Luc 17.10).
Os méritos dos homens são nulos.
Portanto, embora ensinemos que Deus recompensa as nossas boas ações,
todavia ensinamos, ao mesmo tempo, com Santo Agostinho, que Deus não
coroa em nós os nossos méritos, mas os seus dons. Por isso dizemos, que
qualquer recompensa que recebemos é também graça, e é mais graça que
recompensa, porque o bem que fazemos, fazemo-lo mais por Deus do que por
nós mesmos, e porque São Paulo diz: “Que tens tu que não tenhas
recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não
tiveras recebido?” (I Co 4.7). E isto é o que o bendito mártir São
Cipriano concluiu deste verso: Não devemos gloriar-nos de coisa alguma
em nós, visto que nada é propriamente nosso. Condenamos, portanto, os
que defendem os méritos dos homens, de modo a esvaziar a graça de Deus.
17. Da Igreja de Deus, santa e católica, e do único Cabeça da Igreja.
A Igreja sempre existiu e sempre existirá.
Visto que Deus desde o princípio quis salvar os homens e trazê-los ao
conhecimento da verdade (I Tim 2.4), é absolutamente necessário que a
Igreja tenha existido no passado, exista agora e continue até o fim do
mundo.
Que é a Igreja.
A Igreja é a assembléia dos fiéis convocada ou reunida do mundo: é,
direi, a comunhão de todos santos, isto é, dos que verdadeiramente
conhecem, adoram corretamente e servem o verdadeiro Deus em Cristo, o
Salvador, pela palavra e pelo Espírito Santo, e que, finalmente,
participam, pela fé, de todos os benefícios gratuitamente oferecidos
mediante Cristo. Cidadãos de uma comunidade. São todos eles cidadãos de
uma só cidade, vivem sob o mesmo Senhor, sob as mesmas leis, e na mesma
participação de todos os benefícios. O apóstolo os chamou “concidadãos
dos santos, e... da família de Deus” (Ef 2.19), denominando “santos” os
fiéis na terra (I Co 4.1), que são santificados pelo sangue do filho de
Deus. Deve ser entendido inteiramente com relação a estes santos o
artigo do Credo: “Creio na santa Igreja Católica, na comunhão dos
santos”.
Uma só Igreja em todos os tempos.
E, visto que há sempre um só Deus e um só Mediador entre Deus e os
homens, Jesus o Messias, e um só Pastor de todo o rebanho, uma só Cabeça
deste corpo, enfim, um só Espírito, uma só salvação, uma só fé, um só
testamento ou aliança, segue-se, necessariamente, que existe uma só
Igreja. A Igreja Católica. Por isso chamamos “católica” e essa Igreja,
porque é universal, e se espalha por todas as partes do mundo,
estende-se por todos os tempos e não é limitada pelo tempo ou pelo
espaço. Condenamos, portanto, os donatistas, que confinavam a Igreja a
não sei que cantos da África, e não aprovamos o clero romano, que vive a
propalar que só a Igreja de Roma é Católica.
Partes ou formas da Igreja.
A Igreja divide-se em diferentes partes ou formas, não por estar
dividida ou rasgada em si mesma, mas por ser distinta pela diversidade
dos seus membros. Militante e triunfante. Uma é chamada a Igreja
Militante e a outra a Igreja Triunfante. A primeira ainda milita na
terra e luta contra a carne, o mundo e o Diabo, que é o príncipe deste
mundo, e contra o pecado e a morte. A outra, já deu baixa e triunfa no
céu depois de ter vencido esses inimigos, e exulta diante do Senhor.
Entretanto, essas duas igrejas têm comunhão e união uma com a outra.
A Igreja particular.
A Igreja Militante na terra tem tido, sempre, muitas igrejas
particulares. Contudo, todas estas devem ser referidas à unidade da
Igreja católica. Esta Igreja (Militante) foi estabelecida de um modo
antes da Lei, entre os patriarcas, de outro modo diferente sob Moisés,
pela Lei; e de modo diferente por Cristo, por meio do Evangelho.
Os dois povos.
Em geral se mencionam dois povos: os israelitas e os gentios, ou
aqueles que foram congregados de entre judeus e gentios na Igreja. Há,
também, dois Testamentos, o Velho e o Novo. A mesma Igreja para o velho e
o novo povo. No entanto, de todos esses povos foi e ainda é só uma a
comunidade, uma só a salvação num só Messias, em quem, como membros de
um só corpo, sob um só Cabeça, todos estão unidos na mesma fé,
participando também do mesmo alimento e da mesma bebida espiritual.
Aqui, porém, reconhecemos uma diversidade de tempos e uma diversidade
nos sinais do Messias prometido e manifestado; agora, abolidas as
cerimônias, a luz brilha sobre nós de maneira mais clara, e bênçãos nos
são dadas mais abundantemente, e uma liberdade mais completa.
A Igreja, casa do Deus vivo.
Esta santa Igreja de Deus é chamada a casa do Deus vivo, construída de
pedras vivas e espirituais e fundada sobre uma rocha firme, sobre
fundamento que ninguém tem o direito de substituir por um outro, e é,
assim chamada “coluna e baluarte da verdade” (I Tim 3.15). A Igreja não
erra. Ela não erra, enquanto se apóia sobre a rocha, Cristo, e sobre o
fundamento dos profetas e apóstolos. E não é de admirar se ela errar,
todas as vezes que abandonar aquele que, só, é a verdade. A Igreja noiva
e virgem. A Igreja é também chamada virgem e a noiva de Cristo e, em
verdade, única e dileta. O apóstolo diz: “Tenho-vos preparado para vos
apresentar como virgem pura a um esposo” (II Co II.2). A Igreja, rebanho
de ovelhas. A Igreja é chamada rebanho sob um só pastor, Cristo,
segundo Ez, cap. 34, e João, cap. 10. A Igreja corpo de Cristo. É
chamada também corpo de Cristo, porque os fiéis são os membros vivos de
Cristo, sob Cristo, o Cabeça.
Cristo o único cabeça da Igreja.
É a cabeça que tem a preeminência no corpo, e dela o corpo todo recebe
vida; pelo seu espírito o corpo é em tudo governado; dela, ainda, o
corpo recebe incremento e crescimento. Mais ainda, há uma só cabeça do
corpo a qual com ele se ajusta. Por isso a Igreja não pode ter nenhuma
outra cabeça além de Cristo. Como a Igreja é um corpo espiritual, ela
precisa ter também uma cabeça espiritual em harmonia consigo mesma. Não
pode ser governada por outro espírito que não seja o Espírito de Cristo.
Por conseguinte, São Paulo diz: “Ele é a cabeça do corpo, da igreja.
Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as
cousas ter a primazia” (Col 1.18). E em outro lugar: “Cristo é o cabeça
da igreja, sendo este mesmo salvador do corpo” (Ef 5.23). E novamente:
Ele é “o cabeça sobre todas as cousas, e o deu à igreja, a qual é o seu
corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as cousas” (Ef 1.22
ss). Também: “Cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem
todo o corpo, bem ajustado e consolidado... efetua o seu próprio
aumento” (Ef 4.15 ss). Por isso não aprovamos a doutrina do clero
romano, que faz do seu Pontífice Romano o pastor universal, o cabeça
supremo da Igreja Militante aqui na terra, e assim o próprio vigário de
Jesus Cristo, que tem, como eles dizem, toda a plenitude de poder e
soberana autoridade na Igreja. Cristo o único pastor da Igreja.
Ensinamos que Cristo, nosso Senhor, é e continua a ser o único pastor
universal e sumo Pontífice diante de Deus seu Pai, e que na Igreja ele
mesmo realiza todas as funções de um pontífice ou pastor, até o fim do
mundo; [VIGÁRIO] e, conseqüentemente, não necessita de vigário, que é
substituto de quem está ausente. Mas Cristo está presente com sua Igreja
e é sua cabeça vivificadora. Nenhum primado na Igreja. Ele proibiu, com
toda a severidade, aos seus apóstolos e sucessores qualquer veleidade
de primado e domínio na Igreja. Portanto, todos os que resistem,
opondo-se a essa verdade transparente, e introduzem outro governo na
Igreja de Cristo devem ser ligados àqueles, a respeito de quem
profetizam os apóstolos de Cristo, São Pedro e São Paulo, em II Ped cap.
2, e Act 20.2, II Co 11.2, II Tes, cap. 2, assim como em outros passos.
Nenhuma confusão na Igreja.
Contudo, repudiando o cabeça romano, não introduzimos na Igreja de
Cristo nenhuma confusão ou perturbação, pois ensinamos que o governo da
Igreja, estabelecido pelos apóstolos, nos é suficiente para conservar a
Igreja na devida ordem. No princípio, quando a Igreja não tinha esse
chefe romano, que hoje, como se diz, a conserva em ordem, não estava em
confusão ou desordenada. O chefe romano preserva, na verdade, a sua
tirania e a corrupção que foi introduzido na Igreja; e, ao mesmo tempo,
ele impede, resiste e, com todas as suas forças, arruína a conveniente
reforma da Igreja.
Dissentimento e luta na Igreja.
Objetam-nos que tem havido várias lutas e dissenssões em nossas Igrejas
desde que se separaram da Igreja Romana, e que por isso elas não podem
ser igrejas verdadeiras. Como se nunca tivesse havido seitas na Igreja
Romana, nem dissenssões e lutas a respeito de religião, e na verdade
presentes não tanto nas escolas como nos púlpitos no meio do povo.
Sabemos, certamente, que o apóstolo disse: “Deus não é de confusão; e,
sim, de paz” (I Co 14.33). E: “porquanto, havendo entre vós ciúmes e
contendas, não é assim que sois carnais?” Contudo, não podemos negar que
Deus estava na Igreja apostólica e que a Igreja apostólica era Igreja
verdadeira, não obstante a existência de combates e dissensões nela. O
apóstolo São Paulo repreendeu o apóstolo São Pedro (Gal 2.11 ss), e
Barnabé divergiu de Paulo. Grande luta surgiu na Igreja de Antioquia
entre os que pregavam o único Cristo, como Lucas registra nos Atos dos
Apóstolos, cap. 15. E tem havido, em todos os tempos, graves lutas na
Igreja, e os mais eminentes doutores da Igreja divergiram de opinião
entre si acerca de importantes assuntos, sem, no entanto, a Igreja
deixar de ser aquilo que ela era, por causa de tais contendas. Pois,
dessa forma, é do agrado de Deus usar as dissensões que surgem na Igreja
para a glória do seu nome, para elucidar a verdade e para que os que
são aprovados sejam manifestados (I Co 11.19).
Marcas ou sinais da verdadeira Igreja.
Ademais, visto que não reconhecemos nenhum outro chefe da Igreja a não
ser Cristo, de igual modo não reconhecemos como a verdadeira Igreja
qualquer Igreja que se vangloria de o ser; ensinamos, no entanto, que a
verdadeira Igreja é aquela em que se encontram as marcas ou sinais da
verdadeira Igreja, principalmente a legítima e sincera pregação da
palavra de Deus como nos foi deixada nos escritos dos profetas e
apóstolos, que nos conduzem todos nós a Cristo, que no Evangelho disse:
“As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem.
Eu lhes dou a vida eterna... De modo nenhum seguirão o estranho, antes
fugirão dele porque não conhecem a voz dos estranhos” (João 10.5, 27,
28).
E
aqueles que são assim na Igreja de Deus têm uma fé e um espírito; e por
isso adoram o único Deus e só a ele cultuam em espírito e verdade, só a
ele amando de todo o coração e de todas as suas forças, só a ele orando
por meio de Jesus Cristo, o único Mediador e Intercessor; e não buscam
nenhuma justiça e vida fora de Cristo e da fé nele. Pelo fato de
reconhecerem a Cristo como o único chefe e fundamento de sua Igreja,
apoiando-se nele, renovam-se diariamente pelo arrependimento e, com
paciência, carregam a cruz imposta a eles. Além disso, congregados
juntos com todos os membros de Cristo por um amor não fingido, revelam
que são discípulos de Cristo perseverando no vínculo da paz e da santa
unidade. Ao mesmo tempo participam dos sacramentos instituídos por
Cristo e a nós entregues pelos seus apóstolos, não os usando de nenhuma
outra maneira a não ser como os receberam do próprio Senhor. Aquela
palavra do apóstolo São Paulo é bem conhecida de todos: “Porque eu
recebi do Senhor o que também vos entreguei” (I Co 11.23 ss). Por causa
disso, condenamos como alienadas da verdadeira Igreja de Cristo todas
aquelas igrejas que não são como ouvimos que devem ser, a despeito do
muito que se jactam de uma sucessão de bispos, de unidade e de
antiguidade. Além do mais, temos a advertência dos apóstolos de Cristo,
para que fujamos da idolatria e de Babilônia (I Co 10.14; I João 5.21), e
não tenhamos parte com ela se não queremos ser participantes das pragas
de Deus (Apoc 18.4; II Co 6.17).
Fora da Igreja de Deus não há salvação.
Consideramos a comunhão com a verdadeira Igreja de Cristo coisa tão
elevada que negamos que possa viver perante Deus aqueles que não
estiverem em comunhão com a verdadeira Igreja de Deus, mas dela se
separam. Pois, como não havia salvação fora da arca de Noé, quando o
mundo perecia no dilúvio, igualmente cremos que não há salvação certa e
segura fora de Cristo, que se oferece para o bem dos eleitos na Igreja; e
por isso ensinamos que os que querem viver não podem separar-se da
Igreja de Cristo.
A Igreja não está limitada aos seus sinais.
Entretanto, pelos sinais acima mencionados, não restringimos a Igreja
ao ponto de ensinarmos que estão fora dela todos aqueles que ou não
participam dos sacramentos, pelo menos não voluntariamente ou por
desprezo, mas antes, forçados pela necessidade, involuntariamente se
abstêm deles ou deles são privados, ou em quem a fé algumas vezes falha,
embora não seja inteiramente extinta e não cesse de todo; ou em quem se
encontram as imperfeições e erros devidos à fraqueza. Sabemos que Deus
teve alguns amigos no mundo fora da comunidade de Israel. Sabemos do que
aconteceu ao povo de Deus no cativeiro da Babilônia, onde foram
privados dos seus sacrifícios por setenta anos. Sabemos o que aconteceu a
São Pedro, que negou o Mestre, e o que costuma acontecer diariamente
aos eleitos de Deus e às pessoas fiéis que se desviam e são fracas.
Sabemos, mais, que tipo de igrejas eram as existentes na Galácia e em
Corinto nos dias dos apóstolos, nas quais o apóstolo encontrou muitos e
sérios pecados; apesar disso ele as chama santas igrejas de Cristo (I Co
1.2; Gal 1.2).
A Igreja às vezes parece estar extinta.
Sim, muitas vezes acontece que Deus, em seu justo juízo, permite que a
verdade da sua Palavra, a fé católica e o culto verdadeiro de Deus sejam
de tal forma obscurecidos e deformados, que a Igreja parece quase
extinta e não mais existir, como vemos ter acontecido nos dias de Elias
(I Reis 19.10, 14), e em outras ocasiões. Não obstante, Deus tem, neste
mundo e nestas trevas, os seus verdadeiros adoradores, que não são
poucos, chegando mesmo a sete mil e mais (I Reis 19.18, Apoc 7.4, 9).
Pois o apóstolo exclama: “O firme fundamento de Deus permanece, tendo
este selo, ‘O Senhor conhece os que lhe pertencem’”, etc. (II Tim 2.19).
Vem daí que pode a Igreja de Deus ser designada invisível; não que os
homens dos quais ela é formada sejam invisíveis, mas porque, estando
oculta de nossos olhos e sendo conhecida só de Deus, ela às vezes
secretamente foge ao juízo humano.
Nem todos os que estão na Igreja são da Igreja.
Por outro lado, nem todos os que são contados no número da Igreja são
santos ou membros vivos e verdadeiros da Igreja. Pois há muitos
hipócritas que externamente ouvem a palavra de Deus e publicamente
recebem os sacramentos, e parecem invocar a Deus somente por meio de
Cristo, confessar que Cristo é a sua única justiça, e adorar a Deus e
exercer os deveres de caridade e por algum tempo suportar com paciência
as desgraças. E, não obstante, interiormente, estão completamente
destituídos da verdadeira iluminação do Espírito, de fé e de sinceridade
de coração, e de perseverança até o fim. Mas finalmente o caráter
destes homens, em sua maior parte, será manifestado. O apóstolo São João
diz: “Eles saíram de nosso meio, mas não eram dos nossos; porque, se
tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco” (I João 2.19).
Todavia, conquanto simulem piedade, não são da Igreja, ainda que sejam
considerados estarem na Igreja, exatamente como os traidores numa
república estão incluídos no número de seus cidadãos, antes que sejam
descobertos; e, como o joio e a palha se encontram no trigo, e como
inchaços e tumores se acham no corpo sadio, quando ao contrário são
doenças e deformidades e não genuínos membros do corpo. E assim a Igreja
de Deus é muito adequadamente comparada a uma rede que retira peixes de
todas as espécies, e a um campo no qual se encontram joio e trigo (Mat
13.24 ss, 47 ss).
Não devemos julgar irrefletida e prematuramente.
Conseqüentemente, devemos ser muito cuidadosos, não julgando antes da
hora, nem tentando excluir e rejeitar ou separar aqueles aos quais o
Senhor não quer excluídos nem rejeitados, e nem aqueles que não podemos
eliminar sem prejuízo para a Igreja. Por outro lado, devemos estar
vigilantes para que, enquanto os piedosos ressonam, os ímpios não ganhem
terreno e causem mal à Igreja.
A unidade da Igreja não consiste em ritos externos.
Além disso, diligentemente ensinamos que se deve tomar grande cuidado
naquilo em que consistem de modo especial a verdade e a unidade da
Igreja, para não provocarmos nem alimentarmos cismas na Igreja,
irrefletidamente. A unidade não consiste em cerimônias e ritos externos,
mas antes na verdade e unidade da fé católica. A fé católica não nos é
transmitida pelas leis humanas, mas pelas Santas Escrituras, das quais é
um resumo o Credo Apostólico. E, assim, lemos nos escritores antigos
que havia grande diversidade de cerimônias, mas que eram livres e
ninguém jamais pensava que a unidade da Igreja era, desse modo,
dissolvida. Assim, ensinamos que a verdadeira harmonia da Igreja
consiste em doutrinas e na verdadeira e unânime pregação do Evangelho de
Cristo, nos ritos que foram expressamente transmitidos pelo Senhor. E
aqui insistimos na palavra do apóstolo: “Todos, pois, que somos
perfeitos, tenhamos este sentimento; e, se porventura pensais doutro
modo, também isto Deus vos esclarecerá. Todavia, andemos de acordo com o
que já alcançamos” (Fil 3.11 ss).
18. Dos ministros da Igreja, sua instituição e deveres
Deus usa ministros na edificação da Igreja.
Deus sempre usou ministros para reunir ou estabelecer para si a Igreja,
e para o governo e preservação da mesma; e ainda os usa e sempre os
usará, enquanto a Igreja permanecer na terra. Portanto, a origem, a
instituição e o ofício de ministros é uma ordenação muito antiga de Deus
mesmo e não inovação de homens. Instituição e origem de ministros. É
verdade que Deus poderia, pelo seu poder, sem qualquer meio, congregar
para si mesmo uma Igreja de entre os homens; mas ele preferiu tratar com
os homens pelo ministério de homens. Por isso os ministros devem ser
considerados não como ministros apenas por si mesmos, mas como ministros
de Deus, visto que por meio deles Deus realiza a salvação de homens.
O ministério não deve ser depreciado.
Por essa razão, chamamos a atenção dos homens para que tomem cuidado
para não atribuirmos o que diz respeito à nossa conversão e instrução ao
poder secreto do Espírito Santo, fazendo pouco do ministério
eclesiástico. Pois convém termos sempre em mente as palavras do
apóstolo: “Como, porém, invocarão aquele em que não creram? e como
crerão naquele de quem nada ouviram? e como ouvirão, se não há quem
pregue? ... E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de
Cristo” (Rom 10.14, 17). E também o que o Senhor disse no Evangelho:
“Em verdade, em verdade vos digo: Quem recebe aquele que eu enviar, a
mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou” (João
13.20). De igual modo, um homem da Macedônia, que apareceu numa visão a
São Paulo, enquanto este se encontrava na Ásia, secretamente o admoestou
dizendo: “Passa à Macedônia, e ajuda-nos” (At 16.9). E em outro lugar o
mesmo apóstolo diz: “Porque de Deus somos cooperadores; lavoura de
Deus, edifício de Deus sois vós” (I Co 3.9).
Por
outro lado, no entanto, devemos precaver-nos para não atribuirmos
demasiado aos ministros e ao ministério; aqui também lembrando-nos das
palavras de nosso Senhor no Evangelho: “Ninguém pode vir a mim se o Pai
que me enviou não o trouxer” (João 6.44), e as palavras do apóstolo:
“Quem é Apolo? e quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto
conforme o Senhor concedeu a cada um ... Eu plantei, Apolo regou; mas o
crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma cousa,
nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento” (I Co 3. 5, 7). Deus move
os corações dos homens. Então, creiamos que Deus nos ensina pela sua
palavra, externamente por meio dos seus ministros e internamente move os
corações dos seus eleitos à fé pelo seu Espírito Santo; e que,
portanto, devemos atribuir a Deus toda a glória de todo este benefício.
Mas deste assunto já tratamos no primeiro capítulo desta Explanação.
Quem são os ministros e de que sorte são os que Deus deu ao mundo.
E em verdade desde o princípio do mundo Deus usou os mais eminentes
homens no mundo inteiro (ainda que muitos deles fossem simples na
sabedoria terrena ou na filosofia, no entanto na verdadeira teologia
eram excelentes), a saber, os patriarcas, com os quais ele falou
freqüentemente pelos anjos. Pois os patriarcas eram os profetas e
mestres dos seus dias, aos quais, por essa razão, quis Deus que vivessem
por vários séculos, para que fossem, por assim dizer pais e luzes do
mundo. Foram seguidos por Moisés e os profetas famosos pelo mundo
inteiro.
Cristo o mestre.
Depois destes o Pai celestial enviou o seu Filho unigênito, o mais
perfeito mestre do mundo, em quem está escondida a sabedoria de Deus, a
qual veio até nós através da mais santa, simples e perfeita de todas as
doutrinas. Ele escolheu discípulos para si mesmo, aos quais fez
apóstolos. Estes saíram por todo o mundo e em toda parte congregaram
igrejas pela pregação do Evangelho, e depois ordenaram pastores ou
mestres (doutores) em todas as igrejas do mundo, segundo o mandamento de
Cristo; mediante seus sucessores ele ensinou e governou a Igreja até
hoje. Portanto, como Deus deu ao seu povo antigo os patriarcas,
juntamente com Moisés e os profetas, assim também ao seu povo do Novo
Testamento ele enviou seu Filho unigênito e, com ele, os apóstolos e
doutores da Igreja.
Ministros do Novo Testamento.
Além disso, os ministros do novo povo são designados por diversos
nomes. São chamados apóstolos, Profetas, evangelistas, bispos, anciãos,
pastores e mestres (I Co 12.28; Ef 4.11). Os apóstolos. Os apóstolos não
permaneciam num lugar determinado, mas por todo o mundo iam congregando
diversas igrejas. Uma vez estas estabelecidos, deixou de haver
apóstolos, e, em seu lugar, apareceram pastores, cada um em sua igreja.
Profetas. Nos primeiros tempos eram videntes, conhecendo o futuro; mas
também interpretavam as Escrituras. Tais homens são encontrados também
hoje. Evangelistas. Os escritores da história evangélica eram chamados
Evangelistas; mas eram também arautos do Evangelho de Cristo; como o
apóstolo São Paulo ordena a Timóteo: “Faze o trabalho de evangelista”
(II Tim 4.5). Bispos. Bispos são os supervisores e vigias da Igreja, que
administram o alimento e outras necessidades da vida da Igreja.
Presbíteros. Os presbíteros são os anciãos e, por assim dizer, os
senadores e pais da Igreja, governando-a com sadio conselho. Pastores.
Os pastores não só guardam o rebanho do Senhor, como também providenciam
as coisas necessárias a ele. Mestres. Os mestres instruem e ensinam a
verdadeira fé e piedade. Portanto, os ministros da Igreja podem, agora,
ser chamados bispos, anciãos, pastores e mestres.
Ordens dos papistas.
Com o passar o tempo, muitas outras designações de ministros na Igreja
foram introduzidas na Igreja de Deus. Alguns foram ordenados patriarcas,
outros arcebispos, outros sufragâneos; também metropolitanos,
arquidiáconos, diáconos, subdiáconos, acólitos, exorcistas, cantores,
porteiros e não sei quantos outros, como cardeais, reitores e priores;
abades maiores e menores; ordens mais elevadas e inferiores. Não estamos
preocupados, porém, acerca de todas estas, de como foram uma vez e são
agora. Basta-nos a doutrina apostólica no que concerne aos ministros.
A respeito dos monges.
Como sabemos com certeza que os monges e as ordens, ou seitas de
monges, não são instituídas nem por Cristo, nem pelos apóstolos,
ensinamos que elas nada valem para a Igreja de Deus; antes são
perniciosas. Pois, embora anteriormente fossem toleráveis - quando eram
solitários, ganhando a vida com suas próprias mãos, e não eram carga
para ninguém e, como os leigos, eram por toda parte obedientes aos
pastores das igrejas - agora, porém, o mundo todo vê e sabe a que são
semelhantes. Eles formulam não sei que votos; mas levam vida totalmente
contrária aos seus votos, de modo que os melhores deles merecem ser
incluídos entre aqueles de quem o apóstolo fala: “Estamos informados de
que entre vós há pessoas que andam desordenadamente, não trabalhando”
etc. (II Tes 3.11 ). Portanto, não temos tais pessoas em nossas igrejas,
nem ensinamos que devem existir nas igrejas de Cristo.
Os ministros devem ser chamados e eleitos.
Ninguém deve usurpar a honra do ministério eclesiástico; isto é,
apoderar-se dele por suborno ou quaisquer enganos, ou por sua própria
escolha. Que os ministros da Igreja sejam chamados e eleitos por eleição
legal e eclesiástica; isto é, que sejam eleitos escrupulosamente pela
Igreja ou por aqueles que dela receberam delegação para tal fim, na
devida ordem, sem qualquer tumulto, divisões ou rivalidade. Não se eleja
qualquer um, mas homens idôneos, que se distingam por suficiente
cultura sagrada, piedosa eloqüência, sabedoria simples, e por fim, pela
moderação e reputação honrada, segundo a regra apostólica fixada pelo
apóstolo em I Tim, cap. 3, e Tit, cap. 1.
Ordenação.
E os que foram eleitos sejam ordenados pelos anciãos com orações
públicas e imposição das mãos. Aqui condenamos todos quantos concorrem
por conta própria, não sendo nem escolhidos, nem enviados, nem ordenados
(Jer. cap. 23). Condenamos os ministros ineptos e os desprovidos dos
dons necessários a um pastor.
Ao
mesmo tempo, reconhecemos que a inocente simplicidade de certos
pastores na Igreja Antiga por vezes aproveitou mais à Igreja do que a
erudição multiforme, refinada e elegante mas demasiado infatuada de
outros. Por esse motivo não rejeitamos, nem mesmo hoje, a simplicidade
honesta de alguns, que não é, porém, de modo algum ignorante.
O sacerdócio de todos os crentes.
Sem dúvida, os apóstolos de Cristo designam todos os que crêem em
Cristo como “sacerdotes”, não por causa de qualquer ofício, mas porque,
por Cristo, todos os fiéis, feitos reis e sacerdotes, podemos oferecer
sacrifícios espirituais a Deus (Êx 19.6; I Ped 2.9; Apoc 1.6). Portanto,
o sacerdócio e o ministério são bem diferentes um do outro. O
sacerdócio, como acabamos de dizer, é comum a todos os cristãos; o mesmo
não acontece com o ministério. Nem abolimos o ministério da Igreja pelo
fato de termos repudiado o sacerdócio papístico da Igreja de Cristo.
Sacerdotes e sacerdócio.
Sem dúvida nenhuma, na nova aliança de Cristo não existe mais essa
forma de sacerdócio como existia entre o povo antigo; o qual incluía
unção externa, roupagens santas e inúmeras cerimônias que eram tipos de
Cristo, que aboliu tudo isso pela sua vinda e cumprimento desses tipos.
Mas ele mesmo permanece o único sacerdote para sempre e para não
subtrairmos qualquer coisa dele, não chamamos sacerdote a nenhum dos
ministros. Pois o próprio Senhor nosso não nomeou nenhum sacerdote na
Igreja do Novo Testamento, que, tendo recebido autoridade do sufragâneo,
ofereçam sacrifício diariamente, isto é, a própria carne e sangue do
Senhor, pelos vivos e mortos, mas ministros que ensinem e administrem os
sacramentos.
A natureza dos ministros do Novo Testamento.
São Paulo expõe de modo simples e conciso o que devemos pensar dos
ministros do Novo Testamento ou da Igreja Cristã, e o que devemos
atribuir-lhes: “Assim, pois, importa que os homens nos considerem como
ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus” (I Co 4.1).
Por isso, o apóstolo quer que estimemos os ministros como ministros.
Ora, o apóstolo os chamou hyperétas, “remadores”, que têm os
olhos fixos unicamente no timoneiro, e são, assim, homens que não vivem
para si mesmos ou segundo sua própria vontade, mas para os outros - a
saber, para os seus senhores, de cujas ordens dependem inteiramente.
Pois em todos os seus deveres todo ministro da Igreja recebe ordens, não
de satisfazer a sua vontade, mas de executar apenas o que está nos
mandamentos recebidos do seu Senhor. E neste caso declarasse,
expressamente, quem é o Senhor, isto é, Cristo, a quem os ministros
estão sujeitos em todas as questões do ministério.
Os ministros, despenseiros dos mistérios de Deus. Contudo, para explicar mais completamente o ministério, o apóstolo acrescenta que os ministros da Igreja são ecónomos
ou despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, em muitas passagens,
especialmente em Efésios, cap. 3, São Paulo chamou “mistérios de Deus”
ao Evangelho de Cristo. E os escritores antigos também chamaram
“mistérios” aos sacramentos de Cristo. Assim, é para isto que os
ministros da Igreja são vocacionados - para pregarem o Evangelho de
Cristo aos fiéis e para administrarem os sacramentos. Lemos, ainda, em
outro lugar do Evangelho, a respeito do “mordomo fiel e prudente” a quem
“o senhor confiará os seus conservas para dar-lhes o sustento a seu
tempo” (Luc 12.42). Além disso, em outra passagem do Evangelho, um homem
parte de viagem para um pais estrangeiro e, deixando sua casa, passa os
seus bens e a sua autoridade nesta a seus servos, dando a cada um a sua
tarefa.
Do poder dos ministros da Igreja.
Agora, pois, convém falarmos algo também acerca do poder e do dever dos
ministros da Igreja. Sobre esse poder alguns têm discutido
diligentemente, e a ele sujeitaram tudo o que há de supremo valor na
terra, e o fizeram contrariamente ao mandamento do Senhor, que proibiu
aos seus discípulos o domínio e recomendou com insistência a humildade
(Luc 22. 24 ss; Mat 18.3 ss; 20.25 ss). Há,
na verdade, outro poder que é simples e absoluto, chamado o poder do
direito. Segundo esse poder, todas as coisas do mundo inteiro estão
sujeitas a Cristo, o Senhor, como ele mesmo declarou, dizendo: “Toda a
autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mat 28.18). E ainda: “Eu sou o
primeiro e o último, e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou
vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da morte e do
inferno” (Apoc 1.18). Igualmente: “... aquele que tem a chave de David,
que abre e ninguém fechará, e que fecha e ninguém abre” (Apoc 3.7).
O Senhor reserva para si o verdadeiro poder.
Esse poder o Senhor o reserva para si, e não o transfere a nenhum
outro, ficando ao lado ocioso, como espectador, enquanto os seus
ministros trabalham. É Isaías que diz: “Porei sobre o seu ombro a chave
da casa de David” (Is 22.22). E outra vez: “O governo está sobre os seus
ombros” (Is 9.6). Ele não lança o governo sobre os ombros de outros
homens, mas ainda conserva e usa o seu próprio poder, governando todas
as coisas.
O poder do ofício e o ministerial.
Entretanto, há outro poder, o do oficio, ou poder ministerial, limitado
por aquele que usa do poder pleno. E este é mais semelhante a um
ministério do que a um império. As chaves. Um senhor concede poder ao
seu mordomo e para isso dá-lhes as chaves, com as quais ele introduz na
casa ou dela exclui quem o seu senhor gostaria de introduzir ou excluir.
Em virtude desse poder o ministro, pelo seu oficio, realiza aquilo que o
Senhor ordenou que ele fizesse, e o Senhor confirma aquilo que ele faz e
deseja que o que o seu servo fez seja considerado e reconhecido como se
ele mesmo o tivesse feito. Indubitavelmente, é a isto que se referem
estas sentenças evangélicas: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus: o
que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e o que desligares na
terra, terá sido desligado nos céus” (Mat 16.19). Ainda: “Se de alguns
perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são
retidos” (João 20.23). Mas, se o ministro não agir em todas as coisas
como o Senhor lhe ordenou, mas transgredir os limites da fé, então o
Senhor certamente invalida aquilo que ele fez. Eis por que o poder
eclesiástico dos ministros da Igreja é aquela função pela qual eles de
fato governam a Igreja de Deus, mas fazem todas as coisas na Igreja como
o Senhor as ordenou em sua Palavra. Quando essas coisas são feitas, os
fiéis as consideram como feitas pelo próprio Senhor. Quanto às chaves,
delas já se fez acima uma menção.
O poder dos ministros é um e o mesmo em todos.
Ora, o mesmo e igual poder ou função é concedido a todos os ministros
na Igreja. Certamente, no princípio os bispos ou presbíteros governavam a
Igreja em comum; nenhum homem se elevava acima de qualquer outro,
ninguém usurpava maior poder ou autoridade sobre seus co-epíscopos.
Lembrados das palavras do Senhor “Aquele que dirige seja como o que
serve” (Luc 22.26) conservavam-se em humildade, e pelo serviço mútuo
ajudavam-se no governo e na preservação da Igreja.
A ordem a ser preservada.
Entretanto, por causa da preservação da ordem, algum dos ministros
convocava reunião da assembléia, e perante ela propunha assuntos a serem
apresentados, reunia as opiniões dos demais e, enfim, o quanto estava
nele, providenciava para que não surgisse confusão. Assim procedeu São
Pedro, segundo lemos nos Atos dos Apóstolos, o qual contudo não era, por
essa razão, preferido pelos demais, nem revestido de maior autoridade
que os outros. Mui acertadamente disse o Mártir São Cipriano, no seu De Simplicitate Clericorum:
“Os outros apóstolos eram, seguramente, o que era Pedro, dotados de
semelhante associação de honra e poder; mas, [seu] primado procede da
unidade para que a Igreja seja manifesta como sendo uma”.
Como e quando um foi colocado diante dos outros.
Também São Jerônimo, em seu Comentário à Epístola de Paulo a Tito, diz
algo não muito diferente disto: “Antes que começasse a ligação a pessoas
em religião, pela instigação do diabo, as igrejas eram governadas pelo
conselho comum dos anciãos; mas, depois que cada um passou a pensar que
aqueles que ele havia batizado eram seus e não de Cristo, decretou-se
que um dos anciãos fosse escolhido e colocado sobre os demais, em quem
recairia o cuidado de toda a Igreja, e que se removessem todas as
sementes de cismas”. Contudo, São Jerônimo não recomenda este decreto
como divino; pois ele logo acrescenta: “Assim como os anciãos sabem pelo
costume da Igreja que se acham sujeitos ao que foi posto sobre eles,
assim saibam os bispos, que se acham sobre os anciãos mais pelo costume
do que pela verdade de uma disposição do Senhor, e que devem governar a
Igreja em comum com eles”. Até aqui São Jerônimo. Por conseguinte,
ninguém tem o direito de proibir o retorno à antiga constituição da
Igreja de Deus, e recorrer a isso com apoio no costume humano.
Os deveres do ministro.
São vários os deveres dos ministros, no entanto, em geral se restringem
a dois, nos quais todos os outros estão incluídos: o ensino evangélico
de Cristo e a legítima administração dos sacramentos. É dever dos
ministros reunir a assembléia sagrada e nela expor a Palavra de Deus, e
aplicar toda a doutrina à razão e ao uso da Igreja, de modo que o que
for ensinado seja útil aos ouvintes e edifique os fiéis. É dever dos
ministros, afirmo, ensinar os ignorantes e exortar; e estimular os
indecisos ou ainda os que caminham lentamente à avançar no caminho do
Senhor, consolar e confirmar os pusilânimes, e armá-los contra as
multiformes tentações de Satanás; corrigir os que pecam; reconduzir ao
caminho os transviados; levantar os caídos; convencer os contradizentes;
expulsar do rebanho do Senhor os lobos; repreender, prudente e
severamente os crimes e os criminosos; não serem coniventes nem se
calarem perante o crime. Mas, além de tudo isso, é seu dever administrar
os sacramentos, recomendar o uso justo deles e, pela sã doutrina,
preparar todos para recebê-los; conservar também os fiéis numa santa
unidade; e impedir os cismas, enfim catequizar os ignorantes, recomendar
à Igreja as necessidades dos pobres, visitar, instruir e conservar no
caminho da vida os enfermos e os afligidos por várias tentações. Além
disso, devem cuidar das orações públicas ou das súplicas em ocasiões de
necessidade, juntamente com o jejum, isto é, procurar uma santa
abstinência; e cuidar o mais diligentemente possível de tudo o que diz
respeito à tranqüilidade, à paz e à salvação das igrejas.
E
para que o ministro possa realizar todas estas coisas da melhor maneira
e mais facilmente, requer-se especialmente dele que tema a Deus, seja
constante na oração, entregue-se à leitura sagrada e, em todas as coisas
e em todas as ocasiões, seja vigilante, e pela pureza de vida deixe sua
luz brilhar diante de todos os homens.
Disciplina.
E, visto que a disciplina é absolutamente necessária na Igreja, e que a
excomunhão foi outrora usada, entre os antigos, e havia, entre o povo
de Deus julgamentos eclesiásticos, nos quais esta disciplina era
exercida por homens sábios e piedosos, será também dever dos ministros
regular essa disciplina para edificação, de acordo com as circunstâncias
dos tempos, do estado público e com a necessidade. Todas as vezes que
se deve observar a regra, tudo se deve fazer para edificação, decente e
honestamente, sem tirania e divisão. Pois o apóstolo atesta que lhe foi
outorgada pelo Senhor autoridade na Igreja “para edificação, e não para
destruição” (II Co 10.8). E o Senhor mesmo proibiu arrancar o joio no
campo do Senhor, porque haveria o perigo de ser arrancado o trigo
juntamente com ele (Mat 13.29 ss).
Mesmo os maus ministros devem ser ouvidos.
Ademais, detestamos energicamente o erro dos donatistas, que consideram
a doutrina e a administração dos sacramentos eficazes ou ineficazes,
segundo a vida boa ou má dos ministros. Porquanto sabemos que a voz de
Cristo deve ser ouvida, mesmo dos lábios de maus ministros; porque o
Senhor mesmo disse: “Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos
disserem, porém, não os imiteis nas suas obras” (Mat 23.3). Sabemos que
os sacramentos são santificados pela instituição e pela palavra de
Cristo, e que são válidos para o fiel, embora administrados por
ministros indignos. Sobre este assunto Santo Agostinho, o bem-aventurado
servo de Deus, muitas vezes argumentou com base nas Escrituras, contra
os donatistas.
Sínodos.
Apesar disso, deve haver disciplina adequada entre os ministros. Nos
Sínodos a doutrina e a vida dos ministros devem ser cuidadosamente
examinadas. Os que pecam devem ser repreendidos pelos anciãos e
reconduzidos ao caminho certo, se forem curáveis; e, se forem
incuráveis, devem ser depostos, e, como lobos, expulsos do rebanho do
Senhor pelos verdadeiros pastores. Se são falsos mestres, não podem ser
de modo algum tolerados. Nem desaprovamos os concílios ecumênicos, se
convocados segundo o exemplo dos apóstolos, para a salvação da Igreja e
não para sua destruição.
O obreiro é digno do seu salário.
Todos os ministros fiéis, como bons obreiros, são também dignos do seu
salário e não pecam quando recebem estipêndios e todas as coisas
necessárias a eles mesmos e suas famílias. O apóstolo mostra em I Co,
cap. 9 e em I Tim, cap. 5, bem como em outras passagens, que tais coisas
são, de direito, dadas pela Igreja e recebidas pelos ministros. Os
anabaptistas, que condenam e difamam os ministros que vivem do seu
ministério, são também refutados pelo ensino apostólico.
19. Dos sacramentos e da Igreja de Cristo
Os sacramentos (são) adicionais à Palavra e o que são eles.
Deus, desde o princípio, acrescentou à pregação da Palavra em sua
Igreja os sacramentos ou sinais sacramentais. É o que a Sagrada
Escritura claramente testifica. Sacramentos são símbolos místicos, ou
ritos santos, ou atos sagrados instituídos pelo próprio Deus,
consistindo segundo a sua Palavra, de sinais e de coisas significadas,
por meio das quais ele, na Igreja, conserva a memória dos grandes
benefícios por ele concedidos ao homem - renovando-a freqüentemente -
por meio dos quais, também, ele sela as suas promessas e, externamente
as representa e, como que nos põe diante dos olhos aquelas coisas que
internamente ele nos concede, e assim fortalece e aumenta a nossa fé
pela operação do Espírito de Deus em nossos corações. Finalmente, por
meio deles, ele nos separa de todos os outros povos e religiões, e nos
consagra e nos liga a si só, e nos dá a entender o que ele requer de
nós.
Alguns são sacramentos do Velho, outros do Novo Testamento.
Alguns sacramentos são do velho povo, outros do novo. Os sacramentos do
velho povo eram a Circuncisão e o Cordeiro Pascal, que era imolado; por
essa razão, ele se relaciona com os sacrifícios celebrados desde o
princípio do mundo.
O número dos sacramentos do novo povo.
Os sacramentos do novo povo são o Batismo e a Ceia do Senhor. Alguns há
que reconhecem sete sacramentos do novo povo. Destes, reconhecemos que o
arrependimento, a ordenação de ministros - não a ordenação papista, mas
a apostólica - e o matrimônio são instituições úteis de Deus, não porém
sacramentos. A confirmação e a extrema unção são simples invenções dos
homens, que a Igreja pode dispensar sem nenhum prejuízo. Na verdade, não
as temos em nossas igrejas, pois elas contêm certas coisas que de modo
nenhum podemos aprovar. Acima de tudo, detestamos todo o comércio que
exercem os romanistas na dispensação dos sacramentos.
O autor dos sacramentos.
O autor de todos os sacramentos não é nenhum homem, mas Deus somente.
Os homens não podem instituir sacramentos. Estes fazem parte do culto de
Deus. E não é da competência do homem estabelecer e prescrever o culto
de Deus, mas receber e preservar o que por Deus foi entregue. Além
disso, os símbolos têm juntas as promessas que requerem fé. E a fé se
apóia exclusivamente na Palavra de Deus; e a Palavra de Deus
assemelha-se a escritos ou cartas, e os sacramentos a selos, que somente
Deus coloca nas cartas.
Cristo ainda opera nos sacramentos.
E sendo Deus o autor dos sacramentos, assim ele continuamente opera na
Igreja, em que os sacramentos são devidamente celebrados; de modo que os
fiéis, quando recebem dos ministros os sacramentos, reconhecem que Deus
opera em sua própria instituição, e portanto, recebem os sacramentos
como da mão do próprio Deus; e os defeitos do ministro (ainda que sejam
muito grandes) não podem prejudicá-lo, se eles reconhecem que a
integridade dos sacramentos depende da instituição do Senhor.
Deve-se distinguir entre o autor e o ministro dos sacramentos.
Por conseguinte, na administração dos sacramentos distinguem eles,
também claramente, entre o Senhor mesmo e o ministro do Senhor,
confessando que a substância dos sacramentos lhes é dada pelo próprio
Senhor e os símbolos pelos ministros do Senhor.
A essência ou coisa principal nos sacramentos.
Mas, a coisa principal que Deus propõe em todos os sacramentos e para a
qual todos os piedosos de todos os tempos voltam a atenção que outros
chamam substância e matéria nos sacramentos é Cristo o Salvador, o
sacrifício único, o Cordeiro de Deus morto desde a fundação do mundo, a
rocha, também, da qual todos os nossos pais beberam, por quem todos os
eleitos são circuncidados não por mãos, pelo Espírito Santo, e são
lavados de todos os seus pecados e alimentados com o próprio corpo e
sangue de Cristo para a vida eterna.
Semelhança e diferença dos sacramentos do velho e do novo povo de Deus.
Com respeito ao que é o principal e a própria matéria, os sacramentos
de ambos os povos são iguais. Pois Cristo, o único Salvador e Mediador
dos fiéis, é o principal elemento e a própria substância dos sacramentos
em ambos; porquanto o mesmo Deus é o autor dos dois sacramentos.
Eles
foram dados aos dois povos como sinais e selos da graça e das promessas
de Deus, para que tragam à mente e renovem a lembrança dos grandíssimos
benefícios de Deus e para que distinguissem os fiéis de todas as outras
religiões do mundo; finalmente, para que fossem recebidos
espiritualmente pela fé e ligassem à Igreja os participantes, e os
lembrassem dos seus deveres. Nesses e em outros pontos semelhantes digo
que os sacramentos de ambos os povos não são diferentes como parecem,
embora exteriormente o sejam. E, na verdade. no que diz respeito aos
sinais, fazemos uma maior distinção. Os nossos são mais firmes e mais
duradouros, visto que nunca serão mudados até o fim do mundo. Mais
ainda, os nossos testificam que tanto a substância como a promessa foram
cumpridas ou consumadas em Cristo; os anteriores significavam o que
estava para ser cumprido. Os nossos são também, mais simples e menos
complicados, menos pomposos e menos envolvidos com cerimônias. E ainda
mais, pertencem a um povo mais numeroso, disperso por toda a face da
terra. E, porque são mais excelentes e pelo Espírito Santo despertam
maior fé, resultam ainda, em maior abundância do Espírito.
Nossos sacramentos sucedem aos antigos, que foram abolidos.
Certamente, visto que Cristo, o verdadeiro Messias, nos é apresentado e
a abundância da graça é derramada sobre o povo do Novo Testamento, os
sacramentos do velho povo de Deus foram abolidos e cessaram; e em seu
lugar colocaram-se os símbolos do Novo Testamento - o Batismo em lugar
da Circuncisão, a Ceia do Senhor em lugar do Cordeiro Pascal e dos
sacrifícios.
Em que consistem os sacramentos.
E como outrora os sacramentos consistiam da palavra, do sinal e da
coisa significada, assim também agora eles se compõem, por assim dizer,
dessas mesmas partes. Pois, a Palavra de Deus os faz sacramentos, o que
antes não eram. A consagração dos sacramentos. São consagrados pela
Palavra e declarados santificados por aquele que os instituiu.
Santificar ou consagrar uma coisa a Deus é dedicá-la a usos sagrados
isto é, retirá-la do uso comum ou profano e destiná-la a uso sagrado,
pois, os sinais nos sacramentos se derivam do uso comum, de coisas
externas e visíveis. No Batismo, o sinal externo é o elemento da água e a
ablução visível, feita pelo ministro; a coisa significada é a
regeneração e purificação de pecados. Na Ceia do Senhor, o sinal externo
é o pão e o vinho, tomados do uso comum do comer e do beber; a coisa
significado é o corpo do Senhor que foi entregue, e seu sangue vertido
por nós, ou a comunhão do corpo e do sangue do Senhor. Por isso, a água,
o pão, o vinho, segundo sua natureza e à parte da instituição divina e
do uso sagrado, são somente aquilo que são chamados, e que
experimentamos. Mas, quando a Palavra do Senhor lhes é acrescentada, com
a invocação do nome divino e a renovação de sua primeira instituição e
santificação, então esses sinais são consagrados e se mostram
santificados por Cristo. A primeira instituição de Cristo e a
consagração dos sacramentos permanece sempre eficaz na Igreja de Deus,
de tal modo que aqueles que celebram os sacramentos, não de modo
diferente daquele que o Senhor mesmo estabeleceu desde o princípio,
ainda hoje desfrutam daquela primeira e sobre-excelente consagração. E
por isso, na celebração dos sacramentos, são repetidas as próprias
palavras de Cristo.
Os sinais recebem o nome das coisas significadas.
Porque aprendemos da Palavra de Deus que estes sinais foram instituídos
para outro fim, diverso do uso comum, ensinamos que eles agora, em seu
santo uso, assumem em si os nomes das coisas significados e não são mais
chamados apenas água, pão ou vinho, mas também, regeneração ou o lavar
com água e o corpo e sangue do Senhor, ou símbolos e sacramentos do
corpo e sangue do Senhor. Não que os símbolos se transformem nas coisas
significados ou cessem de ser o que são por sua natureza. Pois de outro
modo não poderiam ser sacramentos. Se fossem apenas a coisa significado,
não seriam sinais.
A união sacramental.
Portanto, os sinais adquirem os nomes das coisas, porque são símbolos
místicos de coisas sagradas, e porque os sinais e as coisas significados
estão sacramentalmente ligados; ligam-se, digo, ou unem-se pela
significação mística e pela vontade e conselho daquele que instituiu os
sacramentos. A água, o pão e o vinho não são sinais comuns, mas
sagrados. E aquele que instituiu a água no batismo não a instituiu com a
vontade e intenção de que os fiéis apenas fossem aspergidos pela água
do batismo; e aquele que mandou comer o pão e beber o vinho na ceia não
queria que os fiéis recebessem apenas pão e vinho sem qualquer mistério,
da maneira como comem pão em suas casas, mas, que participassem
espiritualmente das coisas significados, sendo pela fé verdadeiramente
lavados de seus pecados e participantes de Cristo.
As seitas.
Portanto, não podemos absolutamente aprovar os que atribuem a
santificação dos sacramentos a não sei que propriedades e fórmulas ou ao
poder de palavras pronunciadas por alguém que é consagrado e o que tem a
intenção de consagrar, ou por outros acidentes quaisquer, que nem
Cristo nem os apóstolos nos entregaram por palavras ou exemplo. Nem
aprovamos tampouco a doutrina daqueles que falam dos sacramentos apenas
como sinais comuns, não santificados nem eficazes. Nem aprovamos os que
desprezam o aspecto visível dos sacramentos por causa do invisível, e
assim crêem que os sinais são supérfluos porque pensam que já gozam as
próprias coisas significados, como dizem que os messalianos sustentavam.
A coisa significada não está incluída nos sacramentos nem a eles ligada.
Não aprovamos a doutrina daqueles que ensinam que a graça e as coisas
significadas estão de tal modo ligadas aos sinais e neles incluídas que,
todos aqueles que participarem externamente dos sinais, não importando
que espécie de pessoas sejam, são também interiormente participantes da
graça e das coisas significados.
No
entanto, como não julgamos o valor dos sacramentos pela dignidade ou
indignidade dos ministros, assim também não os avaliamos pela condição
daqueles que os recebem. Pois, sabemos que o valor dos sacramentos
depende da fé e da veracidade e exclusiva bondade de Deus. Assim como a
Palavra de Deus permanece a verdadeira Palavra de Deus que, em sendo
pregada, não são meras palavras repetidas, mas ao mesmo tempo, as coisas
significadas ou anunciadas em palavras são oferecidas por Deus, embora
os ímpios e incrédulos as ouçam e compreendam, contudo não aproveitam as
coisas significadas, porque não as recebem pela verdadeira fé, assim os
sacramentos, que pela Palavra consistem de sinais e de coisas
significadas, continuam sendo sacramentos verdadeiros e invioláveis,
significando não somente coisas sagradas mas, pelo oferecimento de Deus,
as próprias coisas significadas, embora os incrédulos não percebam as
coisas oferecidas. Neste caso, a culpa não é de Deus que as dá e as
oferece, mas dos homens que as recebem sem fé e de modo ilegítimo, cuja
incredulidade, porém, não invalida a fidelidade de Deus (Rom 3.3 ss).
O fim para o qual os sacramentos foram instituídos.
Desde que o fim para o qual os sacramentos foram instituídos foi também
explanado, de passagem, quando logo no começo de nossa exposição se
mostrou o que eles são, não há necessidade de se fazer a repetição
molesta daquilo que já foi dito. Conseqüentemente, portanto, falaremos
agora, separadamente, dos sacramentos do novo povo.
20. Do santo batismo
A instituição do batismo.
O batismo foi instituído e consagrado por Deus. Primeiro João batizou,
tendo imergido Cristo na água do Jordão. Dele passou para os apóstolos,
que também batizavam com água. Ordenou-lhes expressamente o Senhor que
pregassem o Evangelho e batizassem “em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo” (Mat 28.19). E nos Atos disse São Pedro aos judeus que
perguntaram o que deviam fazer: “... e cada um de vós seja batizado em
nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o
dom do Espírito Santo” (At 2.38). Em conseqüência disso, o batismo é
chamado por alguns, sinal de iniciação para o povo de Deus, visto que
por ele os eleitos de Deus são consagrados a Deus.
Um só batismo.
Há um só batismo na Igreja de Deus; e é suficiente ser uma só vez
batizado ou consagrado a Deus. Pois o batismo, uma vez recebido,
continua por toda a vida; e é o selo perpétuo de nossa adoção.
O que significa ser batizado.
Ser batizado em nome de Cristo é ser arrolado, incluído e recebido na
aliança e na família, e assim na herança dos filhos de Deus; sim, e
nesta vida ser chamado segundo o nome de Deus, isto é, ser chamado filho
de Deus; ser purificado também da impureza dos pecados, e receber a
multiforme graça de Deus para uma vida nova e inocente. O batismo,
portanto, retém na memória e renova o grande benefício que Deus
dispensou à raça dos mortais. Pois todos nascemos na impureza do pecado e
somos filhos da ira. Mas Deus, que é rico em misericórdia, nos purifica
gratuitamente dos nossos pecados pelo sangue de seu Filho, e, nele nos
adota como seus filhos, e por uma santa aliança nos une a si mesmo e nos
enriquece com inúmeros dons, para podermos viver uma nova vida. Todas
estas coisas são consignadas pelo batismo. Internamente, somos
regenerados, purificados e renovados por Deus mediante o Espírito Santo;
e exteriormente recebemos o selo dos maiores dons na água, pela qual
são também representados os maiores benefícios, e como que colocados
diante dos nossos olhos para serem observados.
Somos batizados com água.
Por isso, somo batizados, isto é, lavados ou aspergidos com a água
visível. Pois a água lava as impurezas, resfria e refresca os corpos
quentes e cansados. E a graça de Deus realiza estas coisas para as
almas, e o faz de modo invisível ou espiritual.
A obrigação do batismo.
Deus também nos separa de todas as religiões e povos estranhos pelo
símbolo do batismo, e nos consagra a si mesmo como sua propriedade.
Confessamos, portanto, nossa fé quando somos batizados, e sujeitamo-nos a
Deus pela obediência, mortificação da carne e novidade de vida, e, com
isso, alistamo-nos na santa milícia de Cristo para lutarmos durante toda
a nossa vida contra o mundo, Satanás e nossa própria carne. Ademais,
somos batizados no corpo da Igreja para, com todos os seus membros,
podermos de modo distinto, participar de uma só e da mesma religião e
dos serviços mútuos.
A forma do batismo.
Cremos que a mais perfeita forma de batismo é aquela pela qual Cristo
foi batizado e pela qual os apóstolos batizaram. Aquilo, portanto, que
pelo expediente do homem foi acrescentado posteriormente, e usado na
Igreja, não consideramos necessário à perfeição do batismo. Por exemplo,
o exorcismo, o uso de velas acesas, óleo, sal, cuspo e outras coisas
semelhantes como a idéia de que o batismo deve ser administrado duas
vezes por ano com um grande número de cerimônias. Cremos que um só
batismo da Igreja foi santificado na primeira instituição realizada por
Deus, e que ele é consagrado pela Palavra, e é também eficaz ainda hoje,
em virtude da primeira bênção de Deus.
O ministro do batismo.
Ensinamos que o batismo não deve ser administrado na Igreja por
mulheres ou por parteiras. São Paulo vetou à mulher os ofícios
eclesiásticos. E o batismo pertence aos ofícios eclesiásticos.
Anabatistas.
Condenamos os anabatistas, que negam que as criancinhas recém-nascidas
dos fiéis devam ser batizadas. Mas, segundo o ensino evangélico, “dos
tais é o Reino de Deus”, e as mesmas se encontram na aliança de Deus.
Por que, então, não deve o sinal da aliança de Deus ser conferido a
elas? Por que não devem aqueles que são propriedade de Deus e estão na
sua Igreja ser iniciados pelo santo batismo? Condenamos os anabatistas
em outras das suas doutrinas peculiares, que eles sustentam em oposição à
Palavra de Deus. Não somos, portanto, anabatistas e nada temos em comum
com eles.
21. Da santa Ceia do Senhor
A Ceia do Senhor.
A Ceia do Senhor - também chamada Mesa do Senhor e Eucaristia, isto é,
Ação de Graças - é em geral chamada ceia porque foi instituída por
Cristo em sua última ceia, e ainda a representa, e porque nela os fiéis
são espiritualmente alimentados e dessedentados.
O autor e consagrador da Ceia.
O autor da Ceia do Senhor não é nenhum anjo ou homem, mas o próprio
Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, que primeiro a consagrou para
sua Igreja. Essa consagração ou bênção ainda permanece entre todos
quantos celebram não outra ceia, mas aquela mesma, que o Senhor
instituiu e na qual eles recitam as palavras da Ceia do Senhor, e em
tudo voltam o olhar com verdadeira fé para o único Cristo, e recebem,
como de suas mãos, aquilo que recebem pelo ministério dos ministros da
Igreja.
Um memorial das bênçãos de Deus.
Por este rito sagrado o Senhor deseja manter em viva lembrança a maior
bênção que concedeu aos mortais, a saber, que pelo dom do seu corpo e
pelo derramamento do seu sangue ele perdoou todos os nossos pecados e
nos redimiu da morte eterna e do poder do Diabo, e agora nos alimenta
com a sua carne e nos dá a beber o seu sangue, os quais, recebidos
espiritualmente com verdadeira fé, nos alimentam para a vida eterna. E
essa bênção tão grande se renova tantas vezes quantas é celebrada a Ceia
do Senhor. Eis o que disse o Senhor: “Fazei isto em memória de mim”.
Esta santa Ceia sela, também, para nós, que o próprio corpo de Cristo
foi verdadeiramente entregue por nós, e seu sangue vertido para remissão
dos nossos pecados, a fim de que em nada a nossa fé venha a vacilar.
O sinal e a coisa significada.
E isto é visivelmente representado de modo exterior por este sacramento
pelo ministrante e, como que exposto aos olhos para ser contemplado,
aquilo que pelo Espírito Santo é concedido interiormente na alma de
maneira invisível. O pão é exteriormente oferecido pelo ministro, e
ouvem-se as palavras do Senhor: “Tomai, comei; este é o meu corpo”; e
“Recebei e reparti entre vós. Bebei dele todos; porque isto é o meu
sangue”. Portanto, os fiéis recebem o que é dado pelo ministro do
Senhor, e comem o pão do Senhor e bebem do cálice do Senhor. Ao mesmo
tempo, pela obra de Cristo por meio do Espírito Santo, interiormente
recebem também a carne e o sangue do Senhor e deles se alimentam para a
vida eterna. Pois a carne e o sangue de Cristo são o verdadeiro alimento
e a verdadeira bebida para a vida eterna; e Cristo mesmo, desde que foi
entregue por nós e é nosso Salvador, é o principal elemento na Ceia, e
não permitimos que nenhuma outra coisa seja colocada em seu lugar.
Mas,
para que se compreenda mais retamente e com clareza corno a carne e o
sangue de Cristo são o alimento e a bebida dos fiéis, e são recebidos
pelos fiéis para a vida eterna, acrescentaríamos estas poucas coisas. Há
mais de uma espécie de comer. Há o comer corporal, pelo qual o alimento
é posto pelo homem na boca, mastigado com os dentes e deglutido para o
estômago. No passado, os cafarnauenses acharam que a carne do Senhor
devia ser comida desse modo, mas são refutados pelo próprio Senhor, em
João, cap. 6. Desde que a carne de Cristo não pode ser comida
corporalmente, sem infâmia e selvageria, assim ela não é alimento para o
estômago. Todos os homens são obrigados a admitir isso. Desaprovamos,
portanto, o cânon nos decretos do papa, Ego Berengariust (De Consecrat., Dist.
2). Nem a piedosa antiguidade cria, nem cremos nós que o corpo de
Cristo possa ser corporalmente e essencialmente comido pela boca.
O comer o Senhor espiritualmente.
Há também um comer espiritual do corpo de Cristo; não que pensemos que,
por isso, o próprio alimento se mude em espírito, mas o corpo e o
sangue do Senhor, embora permanecendo em sua própria essência e
propriedade, nos são espiritualmente comunicados, certamente não de modo
corporal, mas espiritual, pelo Espírito Santo, que aplica em nós e nos
confere estas coisas que nos foram preparadas pelo sacrifício do corpo e
do sangue do Senhor por nós, a saber, a remissão de pecados, o
livramento e a vida eterna; de tal modo que Cristo vive em nós e nós
vivemos nele, sendo que ele nos possibilita recebê-lo pela verdadeira fé
para que possa tornar-se, para nós, esse alimento e bebida espirituais,
isto é, nossa vida.
Cristo como nosso alimento sustenta-nos a vida.
Assim como o alimento e a bebida corporal não só refazem e fortalecem
nossos corpos, mas também os conservam vivos, também a carne de Cristo,
entregue por nós e seu sangue vertido por nós não só refazem e
fortalecem nossas almas, mas também as conservam vivas, não na medida em
que sejam corporalmente comidos e bebidos, mas na medida em que nos são
comunicados espiritualmente pelo Espírito de Deus, como diz o Senhor:
“O pão que darei pela vida do mundo, é a minha carne” (João 6.51), e “a
carne” (sem dúvida, corporalmente comida) “para nada aproveita; o
espírito é o que vivifica” (v. 63). E mais: “As palavras que eu vos
tenho dito, são espírito e são vida”.
Cristo recebido pela fé.
E como devemos, pelo comer, receber alimento em nossos corpos para que
ele atue em nós e prove a sua eficácia em nós - visto que ele não é de
comum proveito quando retido fora de nós - assim é necessário que
recebamos Cristo pela fé, para que ele se torne nosso e viva em nós e
nós nele. Pois, ele diz: “Eu sou o pão da vida; o que vem a mim, jamais
terá fome; e o que crê em mim, jamais terá sede” (João 6.35); e também:
“Quem de mim se alimenta, por mim viverá... permanece em mim e eu nele”
(vs. 57, 56).
Alimento espiritual.
De tudo isto, fica claro que por alimento espiritual não queremos dizer
algum alimento imaginário que não se sabe bem o que seja mas o próprio
corpo do Senhor dado por nós, que entretanto é recebido pelos fiéis não
corpórea, mas espiritualmente pela fé. Nesta questão seguimos o ensino
do próprio Salvador, Cristo o Senhor, segundo João, cap. 6
O comer é necessário à salvação.
E este comer da carne e beber do sangue do Senhor é tão necessário à
salvação, que sem ele, nenhum homem pode ser salvo. Mas este comer e
beber, espiritualmente, ocorrem também à parte da Ceia do Senhor, sempre
e onde quer que o homem creia em Cristo. A isto talvez se aplique a
frase de Santo Agostinho: “Por que preparas os dentes e o estômago? Crê e
terás comido”.
O comer sacramental do Senhor.
Além do comer altamente espiritual há também o comer sacramental do
corpo do Senhor, pelo qual o crente participa não só espiritual e
interiormente do verdadeiro corpo e sangue do Senhor, mas também, pela
aproximação à Mesa do Senhor, recebe externamente o sacramento visível
do corpo e do sangue do Senhor. Sem dúvida alguma, já antes, quando
creu, recebeu o crente o alimento que lhe dá a vida, e ainda o usufrui.
Portanto, quando ele agora recebe o sacramento não é que não receba
algo. Pois ele progride na comunicação contínua do corpo e do sangue do
Senhor, e assim sua fé se aviva e se desenvolve mais e mais, sendo
revigorada pelo alimento espiritual. Enquanto vivemos, nossa fé aumenta
continuamente. Ora, aquele que, externamente, recebe o sacramento com
verdadeira fé, não recebe apenas o sinal, mas também, como dissemos,
desfruta a própria realidade. Além disso, obedece ele à instituição e ao
mandamento do Senhor, e com mente alegre rende graças pela própria
redenção e a da humanidade toda, realizando uma fiel comemoração da
morte do Senhor, dando testemunho diante da Igreja, de cujo corpo é
membro. Assegura-se também, aos que recebem o sacramento que o corpo do
Senhor foi dado e seu sangue derramado, não apenas pelos homens em
geral, mas, particularmente por todo fiel comungante, para quem ele é
alimento e bebida para a vida eterna.
Os incrédulos recebem o sacramento para seu julgamento.
Mas, aquele que se aproxima da sagrados da Mesa do Senhor sem fé,
participa somente do sacramento e não recebe a essência do sacramento,
de onde provém vida e salvação; e tais pessoas participam indignamente
da Mesa do Senhor. Ora, os que comem o pão e bebem o cálice do Senhor de
modo não digno, tornam-se culpados do corpo e do sangue do Senhor
comendo e bebendo para si mesmo condenação (I Co 11.26-29). Não se
aproximando com verdadeira fé, desonram a morte de Cristo e,
conseqüentemente, comem e bebem condenação para si mesmos.
A presença de Cristo na Ceia.
Nós, pois, não identificamos o corpo do Senhor e seu sangue com o pão e
o vinho a ponto de dizer que o próprio pão é o corpo de Cristo, exceto
no sentido sacramental; ou que o corpo de Cristo está oculto
corporeamente sob o pão, de modo que deve ser adorado sob a forma de
pão; ou ainda que, quem quer que receba o sinal, recebe também a própria
realidade. O corpo de Cristo está nos céus, à mão direita do Pai; e,
portanto, nossos corações devem elevar-se para o alto e não se fixarem
no pão, nem deve o Senhor ser adorado no pão. Contudo, o Senhor não está
ausente de sua Igreja, quando esta celebra a Ceia. O sol, que está
afastado de nós, nos céus, encontra-se, entretanto, efetivamente
presente em nosso meio. Quanto mais o Sol da justiça, Cristo, embora
estando ausente de nós nos céus, pelo seu corpo, não estará presente
conosco, não corporal, mas, espiritualmente, pela sua operação
vivificadora, como ele mesmo declarou, por ocasião da última Ceia, que
haveria de estar presente conosco (João, caps. 14, 15 e 16). Decorre dai
que não temos uma Ceia sem Cristo, mas uma Ceia incruenta e mística,
como foi universalmente chamada pela antiguidade.
Outros propósitos da Ceia do Senhor.
Além do mais, na celebração da Ceia do Senhor, somos admoestados a
estarmos conscientes de cujo corpo nos tornamos membros, e portanto, a
sermos uma só mente com todos os irmãos; a viver uma vida santa e a não
nos corrompermos com a iniqüidade e com religiões estranhas; mas,
perseverando na verdadeira fé até o fim da vida, esforçarmo-nos para
alcançar a excelência da santidade de vida.
Preparação para a Ceia.
Convém, portanto, que tendo de participar da Ceia, primeiro
examinemo-nos a nós mesmos, segundo o mandamento do apóstolo,
especialmente quanto à fé que temos, se cremos que Cristo veio para
salvar os pecadores e chamá-los ao arrependimento, e se cremos que
pertencemos ao número dos que foram libertados e salvos por Cristo; e se
estamos resolvidos a mudar nossa vida ímpia, a fim de levarmos uma vida
santa e, com o auxílio do Senhor, a perseverar na verdadeira religião e
na harmonia com os irmãos, e a render graças devidas a Deus pelo seu
livramento.
A observância da Ceia com pão e vinho.
Julgamos que o rito, a maneira ou forma da Ceia mais simples e
excelente seja aquela que mais se aproxime da primeira instituição do
Senhor e da doutrina dos apóstolos. Consiste na proclamação da Palavra
de Deus, em orações piedosas, na ação do Senhor mesmo, e em sua
repetição, comendo do corpo do Senhor, e bebendo de seu sangue;
relembrando a morte do Senhor e ele fiel ação de graças; e numa santa
participação na união do corpo da Igreja.
Desaprovamos,
pois, os que privaram os fiéis de um dos elementos do sacramento, a
saber, do cálice do Senhor. Estes pecam seriamente contra a ordem do
Senhor, que diz: “Bebei dele todos”; o que ele não disse de modo tão
expresso a respeito do pão.
Não
estamos discutindo, agora, que espécie de missa existiu outrora entre
os antigos, se deve ser tolerada ou não. Mas, dizemos isto abertamente: a
missa agora usada em toda a Igreja Romana foi abolida em nossas igrejas
por muitas e boas razões, as quais, para sermos breve, não enumeramos
agora em pormenores. Não poderíamos aprovar a mudança de uma ação
salutar em um espetáculo inútil, e num meio de alcançar mérito, e
celebrado por um preço. Nem poderíamos aprovar a afirmação de que na
mesma, o sacerdote efetua o próprio corpo do Senhor, e realmente o
oferece pela remissão dos pecados dos vivos e dos mortos, e ainda para a
honra, veneração e lembrança dos santos no céu, etc.
22. Do culto e das reuniões na Igreja
Como deve ser o culto.
Embora se permita a todos os homens lerem as Escrituras particularmente
em casa, pela instrução edificando-se mutuamente na verdadeira
religião, no entanto, para que a Palavra de Deus seja anunciada
convenientemente ao povo, e se façam publicamente orações e súplicas,
bem como sejam os sacramentos administrados de modo próprio, e se
levantem ofertas para os pobres e para o pagamento de todas as despesas
da Igreja, e para a conservação das relações sociais, é muito necessário
que se mantenham as reuniões de culto ou da Igreja. Pois, é certo que
na Igreja apostólica e primitiva, havia tais assembléias, freqüentadas
por todos os piedosos.
As reuniões para culto não devem ser negligenciadas.
Todos quantos negligenciam as reuniões de culto, delas ficando
ausentes, desprezam a verdadeira religião, devendo ser exortados pelos
pastores e magistrados piedosos para não continuarem ausentes dos
cultos.
As reuniões devem ser públicas.
As reuniões da Igreja não devem ser ocultas ou às escondidas, mas
públicas e bem freqüentadas, a não ser que a perseguição movida pelos
inimigos de Cristo e da Igreja não permita que sejam públicas. Pois,
sabemos como sob a tirania dos imperadores romanos, as reuniões da
Igreja Primitiva realizavam-se em lugares secretos.
Lugares decentes de reunião.
Além disso, os lugares onde os fiéis se congregam devem ser decentes, e
em tudo próprios para a Igreja de Deus. Portanto, devem-se escolher
prédios com bastante espaço ou templos, mas expurgados de tudo o que não
seja adequado a uma Igreja. E tudo deve concorrer para o decoro, a
necessidade e a piedosa decência, a fim de que nada fique faltando, nada
que seja indispensável ao culto e às obras necessárias da Igreja.
Nas reuniões, devem-se observar a modéstia e a humildade.
E como cremos que Deus não habita em templos feitos por mãos, também
sabemos que, por causa da Palavra de Deus e do uso sagrado, os lugares
dedicados a Deus e ao seu culto não são profanos, mas sagrados, e os que
neles estão presentes devem conduzir-se com reverência e com modéstia,
reconhecendo que se encontram em lugar sagrado, na presença de Deus e de
seus santos anjos.
A verdadeira ornamentação dos santuários.
Portanto, todo aparato, orgulho e tudo o que seja impróprio à
humildade, à disciplina e à modéstia cristãs, deve ser banido dos
santuários e lugares de oração dos cristãos. Pois, a verdadeira
ornamentação das igrejas não consiste em marfim, ouro e pedras
preciosas, mas na frugalidade, na piedade e nas virtudes daqueles que
estão na Igreja. Que todas as coisas sejam feitas com decência e ordem
na igreja e, finalmente, que todas as coisas concorram para a
edificação.
Culto na linguagem comum.
Calem-se, pois, todas as línguas estranhas nas reuniões de culto, e
sejam todas as coisas expressas na língua do povo, compreendida por
todas as pessoas presentes.
23. Das orações da Igreja, do cântico e das horas canônicas
Vernáculo.
Certo é que se permite a quem quer que seja orar em particular em
qualquer língua que entenda, mas as orações públicas nas reuniões de
culto devem ser feitas em vernáculo, a língua conhecida do povo. Oração.
Que todas as orações dos fiéis sejam dirigidas somente a Deus, pela
mediação única de Cristo, procedentes da fé e do amor. O sacerdócio de
Cristo, o Senhor, e a verdadeira religião proíbem invocar os santos no
céu, ou usá-los como intercessores. Devem-se fazer orações pelos
magistrados, pelos reis e por todos quantos estão investidos de
autoridade, pelos ministros da Igreja e por todas as necessidades das
igrejas. Em calamidades, especialmente em se tratando da Igreja, deve-se
orar sem cessar, tanto em particular como publicamente.
Oração livre.
Ademais, deve a oração ser voluntária, sem constrangimento e não buscar
recompensa. Não convém mesmo que se limite, supersticiosamente a oração
a um lugar, como se não fosse permitido orar em qualquer lugar, exceto
num templo. Nem é necessário que as orações públicas sejam as mesmas
quanto à forma e ao tempo, em todas as igrejas. Que cada igreja use de
liberdade neste sentido. Diz Sócrates, em sua história: “Em todas as
regiões do mundo não encontrareis duas igrejas, que concordem
inteiramente quanto à oração” (Hist. ecclesiast. V. 22,57). Os
autores de tais diferenças - é de supor-se - foram aqueles, que se
encontravam à frente das igrejas em certas ocasiões. No entanto, se
concordam, recomenda-se com insistência que o exemplo seja imitado por
outras.
O método para as orações públicas.
Como em todas as coisas, também nas orações públicas deve haver um
padrão, a fim de que não se tornem longas demais e cansativas. A maior
parte das reuniões de culto deve, portanto, destinar-se ao ensino
evangélico, tomando-se o cuidado para que a congregação não se aborreça
com as orações muito longas, de forma que ao chegar a hora de ouvir a
pregação do Evangelho, os presentes, já exaustos, deixem a reunião ou
queiram suprimi-la. Para tais pessoas o sermão parece muito longo,
quando de outra forma, seria breve. Convém pois, que os pregadores
saibam manter a medida.
Cântico.
De igual forma, deve o cântico ser usado com moderação no culto. O
Cântico chamado Gregoriano encerra muitas coisas tolas; daí com justa
razão ser ele rejeitado por muitas de nossas igrejas. Não se deve
condenar as igrejas, que embora tendo bom sermão não têm um bom cântico.
Nem todas podem contar com a vantagem de ter boa música. Sabemos pelo
testemunho da antiguidade que se o hábito de cantar é muito velho nas
Igrejas Orientais, só tardiamente foi aceito no Ocidente.
Horas canônicas.
A antiguidade nada conhecia das horas canônicas, isto é, das orações
preparadas para certas horas do dia, cantadas ou recitadas pelos
papistas, o que se comprova pelos seus breviários e por outras fontes.
Há nelas não poucos absurdos, dos quais nada direi mais; são elas, com
razão, omitidas pelas igrejas que colocaram em seu lugar coisas
benéficas para toda a Igreja de Deus.
24. Dos dias santos, dos jejuns e da escolha dos alimentos
O tempo necessário para o culto.
Embora não esteja a religião limitada pelo tempo, contudo não pode ser
cultivada ou praticada sem distribuição e arranjo próprio do tempo. Toda
igreja, portanto, escolhe determinado horário para as orações públicas,
a pregação do Evangelho e a celebração dos sacramentos, não sendo
permitido a ninguém transtornar esse horário da igreja a seu bel prazer.
Pois, a não ser que algum tempo livre seja reservado ao exercício da
religião, sem dúvida os homens absorvidos pelos seus negócios, estariam
afastados dela.
O Dia do Senhor.
Por isso vemos que nas igrejas antigas não havia apenas certas horas da
semana destinadas às reuniões, mas que também o Dia do Senhor, desde o
tempo dos apóstolos, fora separado para as mesmas, e para o santo
repouso, prática essa, acertadamente preservada por nossas igrejas para
fins de culto e serviço de amor.
Superstição.
Neste ponto, entretanto, não cedemos às observâncias dos judeus e às
superstições. Pois, não cremos que um dia seja mais santo do que outro,
nem pensamos que o repouso em si mesmo seja aceitável a Deus. Além
disso, guardamos o Dia do Senhor, e não o sábado como livre observância.
As festas de Cristo e dos santos.
Ademais, se na liberdade cristã, as igrejas celebram de modo religioso a
lembrança do nascimento do Senhor, a circuncisão, a paixão, a
ressurreição e sua ascensão ao céu, bem como o envio do Espírito Santo
sobre os discípulos, damos-lhes plena aprovação. Não aprovamos, contudo,
as festas instituídas em honra de homens ou dos santos. Os dias
santificados têm a ver com a primeira Tábua da Lei e só a Deus
pertencem. Finalmente, os dias santificados, instituídos em honra dos
santos, os quais abolimos, têm muito de absurdo e inútil, e não devem
ser tolerados. Entretanto, confessamos que a lembrança dos santos, em
hora e lugar apropriados, pode ser recomendada de modo aproveitável ao
povo em sermões, e os seus santos exemplos, apresentados como dignos de
serem imitados por todos.
Jejum.
Ora, quanto mais seriamente a Igreja de Cristo condena a gula, a
embriaguez e toda a espécie de lascívia e intemperança, tanto mais e com
insistência, recomenda-nos o jejum cristão. Pois, jejuar nada mais é do
que a abstinência e moderação dos piedosos e uma disciplina, cuidado e
castigo de nossa carne, exercitados segundo a necessidade do momento,
pelos quais nos humilhamos diante de Deus, privando nossa carne de seu
combustível, de modo que possa mais espontânea e facilmente obedecer ao
Espírito. Portanto, aqueles que não dão atenção a tais coisas não
jejuam, mas imaginam que o fazem se abarrotam o estômago uma vez por dia
e a certa hora ou em horário prescrito abstêm-se de certos alimentos,
pensando que, pelo fato de terem praticado essa obra agradam a Deus e
estão fazendo algo de bom. O jejum vem a ser um auxílio para as orações
dos santos e para todas as virtudes. Mas, como se vê nos livros dos
profetas, o jejum dos judeus, que se abstinham de alimento, não porém da
iniqüidade, não agradava a Deus.
Jejum público e particular.
Há jejum público e pessoal. Nos tempos antigos celebravam-se jejuns
públicos, em tempos de calamidade ou em situações difíceis da Igreja.
Abstendo-se totalmente de alimento até o anoitecer, dedicavam-se todo o
tempo a santas orações, ao culto a Deus e ao arrependimento. Eles
diferiam pouco do luto, havendo freqüente menção do mesmo nos Profetas,
especialmente em Joel, cap. 2. Tal jejum deve ser observado ainda hoje,
sempre que a Igreja se encontre em situação difícil. Os jejuns
particulares podem ser praticados por qualquer um de nós, quando se
sente afastado do Espírito. Pois, dessa maneira, priva-se a carne de seu
combustível.
Características do jejum.
Todo jejum deve partir de um espírito livre, espontâneo e realmente
humilde, e não simulado, só para conquistar o aplauso ou favor dos
homens, e muito menos para que por meio dele pretenda o homem ser
merecedor de justiça. Mas, que cada um jejue para este fim - não dar
lugar aos desejos da carne e servir a Deus mais fervorosamente.
Quaresma.
O jejum da Quaresma tem o testemunho dos antigos, mas não dos escritos
apostólicos, pelo que não deve e não pode ser imposto aos fiéis. É certo
que no princípio havia várias formas ou costumes de jejum. Por isso,
diz Irineu, escritor muito antigo: “Uns pensam que se deve observar o
jejum somente um dia, outros, dois dias, outros mais dias, e alguns,
quarenta dias. Tal diversidade na observância do jejum não começou em
nossos tempos, porém, muito antes de nós por aqueles, suponho, que não
se apegavam simplesmente ao que lhes havia sido entregue desde o
princípio, mas passaram a outro costume por negligência ou ignorância” (Fragm. 3,
ed. Stieren, I, 824 s). Além disso, Sócrates, o historiador, diz:
“Visto que não se encontra nenhum texto antigo acerca deste assunto,
penso que os apóstolos o deixaram à opinião de cada pessoa, de modo que
cada qual pudesse fazer o que é bom, sem temor ou constrangimento” (Hist. ecclesiast, V. 22,40).
A escolha dos alimentos.
Quanto à escolha dos alimentos, julgamos que no jejum se deve negar à
carne tudo o que possa torná-la mais arrogante e deleitá-la mais,
aguçando-lhe o desejo de peixe, ou carne, ou condimentos, ou de
guloseimas e bons vinhos. Além do mais, sabemos que todas as criaturas
de Deus foram feitas para o uso e serviço dos homens. Tudo o que Deus
fez é bom, devendo ser usado no temor de Deus e com moderação (Gen 2.15
s). Diz o apóstolo: “Todas as coisas são puras para os puros” (Tit
I.15), e mais: “Comei de tudo o que se vende no mercado, sem nada
perguntardes por motivo de consciência” (I Co 10.25). O mesmo apóstolo
chama a doutrina daqueles que ensinam abstenção de carnes “doutrina de
demônios”; pois “... alimentos, que Deus criou para serem recebidos, com
ações de graças, pelos fiéis, e por quantos conhecem plenamente a
verdade; pois, tudo o que Deus criou é bom e, recebido com ações de
graça, nada é recusável” (I Tim 4.1 ss).
Seitas.
Portanto, condenamos inteiramente os tacianos e os encratitas, bem como
todos os discípulos de Eustátio, contra quem foi convocado o Sinodo
Gangrense.
25. Da catequese, do conforto e das visitas aos doentes
A juventude deve ser instruída na piedade.
O Senhor ordenou ao seu povo antigo que tivesse o maior cuidado no
sentido de que a mocidade, desde a infância, fosse devidamente
instruída, e mais do que isso, expressamente ordenou em sua Lei, que a
ensinasse e lhe interpretasse os mistérios dos sacramentos. Sabe-se
pelos escritos dos evangelistas bem como dos apóstolos que não é menor o
interesse de Deus hoje, pela juventude do povo da nova aliança, pois
claramente nos dá testemunho disso, dizendo: “Deixai vir a mim os
pequeninos, não os embaraces, porque dos tais é o reino de Deus” (Mc
10.14). Por isso, os pastores das igrejas agem de maneira a mais sábia,
quando desde cedo e com cuidado, catequizam a juventude,
transmitindo-lhe os primeiros fundamentos da fé, fielmente ensinando-lhe
os rudimentos da nossa religião pela explicação dos Dez Mandamentos, do
Credo Apostólico, da Oração Dominicial e da doutrina dos sacramentos,
com outros princípios semelhantes e tópicos principais da nossa
religião. Que a Igreja mostre a sua fé e diligência trazendo as crianças
para serem catequizadas, desejosa e feliz de ter seus filhos bem
instruídos.
A visitação dos doentes.
Visto que os homens nunca estão mais expostos às mais penosas tentações
do que quando enfraquecidos por enfermidades do espírito ou do corpo,
sendo afligidos por elas, não há dúvida de que nada é mais próprio aos
pastores das igrejas do que zelar com o maior cuidado pelo bem-estar do
rebanho, em doenças ou fraquezas. Portanto, que visitem os enfermos,
prontamente, e que sejam chamados em tempo pelos doentes, se as
circunstâncias assim o exigirem. Que os confortem e confirmem na
verdadeira fé, ajudando-os a lutar contra as perniciosas sugestões de
Satanás. Devem também orar pelos doentes no lar, e se necessário, orar
por eles também no culto público; e cuidem para que sintam felizes ao
partir desta vida. Dissemos anteriormente, que não aprovamos a visitação
papista ao doente com a extrema unção, por ser absurda, não tendo a
aprovação das Escrituras canônicas.
26. Do sepultamento dos fiéis e do cuidado que se deve ter com os mortos; do purgatório e da aparição de espíritos
O sepultamento dos corpos.
Sendo os corpos dos fiéis o templo do Espírito Santo, que seguramente
cremos hão de ser ressuscitados no último dia, as Escrituras mandam que
sejam entregues à terra, honrosamente e sem superstição, e também que se
façam referências honrosas aos santos, que dormiram no Senhor, bem como
se cumpram todos os deveres de piedade familiar para com suas viúvas e
órfãos. Não ensinamos que se tenha qualquer outro cuidado com os mortos.
Portanto, damos ênfase ao fato de que desaprovamos os cínicos, que
negligenciavam os corpos dos mortos e descuidada e desdenhosamente os
lançavam à terra, nunca pronunciando uma boa palavra acerca do falecido,
ou se preocupando com os seus que ficaram.
O cuidado pelos mortos.
Por outro lado, não aprovamos aqueles que se preocupam excessiva e
indevidamente com os mortos; que, à semelhança dos pagãos, lamentam os
seus mortos (embora não censuremos o luto moderado, que o apóstolo
permite em I Tes 4.13, julgando até desumano não entristecer-se alguém
de modo nenhum); e que oferecem sacrifícios pelos mortos, murmuram
certas orações, não sem paramento, com o fim de, por meio de tais
cerimônias, libertar os entes queridos dos tormentos em que foram
imersos pela morte, e pensam serem capazes assim de libertá-los por meio
de tal magia.
O estado da alma que deixou o corpo.
Cremos que os fiéis, depois da morte do corpo, vão diretamente para
Cristo e, portanto, não há necessidade de sufrágios e orações dos vivos
pelos mortos, nem de seus ofícios. Igualmente, cremos que os incrédulos
são imediatamente lançados no inferno, do qual não há saída possível
para os ímpios por quaisquer ofícios dos vivos.
Purgatório.
O que alguns ensinam a respeito do fogo do purgatório se opõe à fé
cristã, a saber, “creio no perdão de pecados e na vida eterna”, e à
perfeita purificação mediante Cristo, bem como a estas palavras de
Cristo, nosso Senhor: “Em verdade, em verdade vos digo: Quem ouve a
minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra
em juízo, mas passou da morte para a vida” (João 5.24). E estas: “Quem
já se banhou não necessita de lavar senão os pés; quanto ao mais está
todo limpo” (João 13.10).
A aparição de espíritos.
No tocante aos espíritos, ou às almas dos mortos, que algumas vezes
aparecem aos vivos e pedem a estes certos trabalhos, pelos quais possam
ser libertados, incluímos tais aparições entre os ludíbrios, as
artimanhas e os enganos do Diabo, que, como pode transformar-se em anjo
de luz, assim se esforça para, ou transtornar a verdadeira fé, ou lançar
dúvida sobre a mesma. No Velho Testamento, o Senhor proibiu a busca da
verdade com os mortos e toda espécie de contacto com os espíritos (Deut
18.11). Ao rico glutão, que estava em tormentos, como narra a verdade
evangélica, se negou a faculdade de voltar a seus irmãos. Assim diz o
divino oráculo: “Eles têm Moisés e os profetas; ouçam-nos. Se não ouvem a
Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que
ressuscite alguém dentre os mortos” (Luc 16.29 ss)
27. Dos ritos, cerimônias e coisas indiferentes
Cerimônias e ritos.
Ao povo do Velho Testamento foram dadas no passado, certas cerimônias,
como uma espécie de instrução para os que estavam sob a Lei, como sob um
pedagogo ou tutor. Mas, quando veio Cristo, o Libertador, e a Lei foi
abolida, nós os fiéis, não estamos mais debaixo da Lei (Rom 6.14), e as
cerimônias desapareceram; por isso os apóstolos não quiseram
conservá-las ou restaurá-las na Igreja de Cristo, a tal ponto que,
abertamente declararam não desejarem pôr nenhuma carga sobre a Igreja.
Portanto, pareceria estarmos introduzindo e restaurando o Judaísmo, se
multiplicássemos as cerimônias e os ritos na Igreja de Cristo, segundo o
costume da Igreja antiga. Por isso, de nenhum modo aprovamos a opinião
daqueles que pensaram que a Igreja de Cristo deve ser regulamentada por
diferentes ritos, como uma espécie de treinamento. Pois, se os apóstolos
não quiseram impor ao povo cristão cerimônias ou ritos, que foram
indicados por Deus, quem, pergunto eu, em perfeito juízo haveria de
impor-lhes invenções imaginadas pelo homem? Quanto mais aumenta o volume
de ritos na Igreja, tanto mais ela se despoja da liberdade cristã, de
Cristo, e de sua fé nele, enquanto o povo busca nos ritos aquilo que
deveria buscar somente pela fé no Filho de Deus, Jesus Cristo. Por
conseguinte, basta aos crentes, alguns ritos moderados e simples, que
não sejam contrários à Palavra de Deus.
Diversidade de ritos.
Se nas igrejas se encontram ritos diferentes, ninguém deve pensar que
por isso estejam as mesmas em desacordo. Diz Sócrates: “Seria impossível
colocar junto no papel todos os ritos das igrejas, em todas as cidades e
países. Nenhuma religião observa os mesmos ritos, ainda que reconheça a
mesma doutrina a respeito deles. Pois, os que pertencem à mesma fé
discordam entre si mesmos acerca dos ritos” (Hist. ecclesiast. V.
22, 30, 62). Isto é o que diz Sócrates. E nós, hoje, tendo em nossas
igrejas diferentes ritos na celebração da Ceia do Senhor e em algumas
outras coisas, contudo não discordamos na doutrina e na fé; nem é, por
esse fato, rasgada em pedaços a unidade e a comunidade de nossas
igrejas. Sempre tiveram as igrejas sua liberdade em tais ritos, como
sendo coisas indiferentes. O mesmo fazemos nós hoje.
Coisas indiferentes.
Mas, ao mesmo tempo as admoestamos a se manterem em guarda, a fim de
não considerarem indiferentes coisas que de fato não o são, como querem
alguns em relação à missa e ao uso das imagens em lugares de culto.
“Indiferente”, escreveu São Jerônimo a Santo Agostinho, “é aquilo que
não é bom nem mau, de modo que, se você o fizer ou não fizer, não é
justo nem injusto”. Portanto, quando para dar validade às coisas
indiferentes se torce a confissão de fé, deixam as mesmas de ser
indiferentes. São Paulo mostra que está certo o homem comer carne, desde
que alguém não o informe de que foi oferecida aos ídolos; pois, de
outra forma estaria errado, visto que comendo, parece aprovar a
idolatria (I Co 8.9 ss; 10.25 ss).
28. Dos bens da Igreja
Os bens da Igreja e seu justo uso.
A Igreja de Cristo conta com recursos provindos da generosidade de
príncipes e da liberalidade dos fiéis, que doaram seus bens à Igreja.
Necessita a Igreja de tais recursos, e desde os tempos antigos têm-nos
tido para a manutenção de tudo o que lhe é necessário. Ora, o verdadeiro
uso dos bens da Igreja era outrora, e ainda o é, o de manter o ensino
nas escolas e nas reuniões religiosas, bem como o culto, ritos e
edifícios sagrados; manter mestres, discípulos e ministros, juntamente
com outras coisas necessárias, e especialmente ajudar a alimentar os
pobres. Administração. Além disso, homens sábios e tementes a Deus,
destacados na administração dos negócios devem ser escolhidos para
administrar legitimamente os bens da Igreja.
O mau uso dos bens da Igreja.
Mas, se por uma calamidade ou por causa da ousadia, ignorância ou
avareza de alguns, os bens da Igreja forem malbaratados, devem ser
restaurados para o uso sagrado por homens fiéis e sábios. Pois, não se
pode ser conivente com o abuso, o que seria o maior sacrilégio.
Portanto, ensinamos que as escolas e instituições, que se tenham
corrompido na doutrina, no culto e na moral, devem ser reformadas, e que
o serviço aos pobres deve ser organizado de uma forma responsável,
prudente e de boa fé.
29. Do celibato, casamento e administração dos negócios domésticos.
Pessoas solteiras.
Os que têm do céu o dom do celibato, de modo que, de coração ou de toda
a alma podem ser puros e continentes e não são levados pelos ardores do
sexo, sirvam ao Senhor nessa vocação, enquanto se sentirem dotados do
dom divino. E não se julguem melhores do que os outros, mas sirvam o
Senhor continuamente em simplicidade e humildade (I Co 7.7 ss). Estes
estão mais aptos a lidar com as coisas divinas do que aqueles que se
distraem com os interesses particulares de uma família. Mas, no caso de
ser-lhes retirado o dom, e sentirem um durável ardor, lembrem-se das
palavras do apóstolo: “É melhor casar do que viver abrasado” (I Co 7.9).
Casamento.
O casamento (que é o remédio da incontinência e é a própria
continência) foi instituído pelo Senhor Deus mesmo, que o abençoou da
maneira mais generosa, e que desejou que o homem e a mulher se unissem
um ao outro inseparavelmente e vivessem juntos em completo amor e
concórdia (Mat 19.4 ss). Sobre isso sabemos o que disse o apóstolo:
“Digno de honra entre todos seja o matrimônio, bem como o leito sem
mácula” (Heb 13,4). E outra vez: “Se a virgem se casar, por isso não
peca” (I Co 7.28).
As seitas. Condenamos, portanto, a poligamia e os que condenam o segundo casamento.
Como deve ser contraído o casamento.
Ensinamos que o casamento deve ser contraído legalmente no temor do
Senhor, e não contra as leis, que proíbem certos graus de
consangüinidade, a fim de que o casamento não seja incestuoso. O
casamento deve ser feito com o consentimento dos pais, ou dos que estão
em lugar dos pais, e acima de tudo para o fim para o qual o Senhor
instituiu o casamento. Além disso, devem conservar-se santos, com a
máxima fidelidade, piedade, amor e pureza dos que se uniram. Portanto,
evitem-se as discussões, as dissenções, a lascívia e o adultério.
Fórum matrimonial.
Devem estabelecer-se cortes legais na Igreja, tendo juizes santos, que
possam cuidar dos casamentos, reprimir a impureza e a imprudência,
diante dos quais se resolvam os conflitos matrimoniais.
A criação dos filhos.
Devem os filhos ser criados pelos pais, no temor do Senhor; e devem os
pais prover o sustento dos seus filhos, lembrando-se do que disse o
apóstolo: “Ora, se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos
de sua própria casa, tem negado a fé, e é pior do que o descrente” (I Tm
5.8). Mas, devem principalmente ensinar a seus filhos para terem uma
carreira ou profissões honestas com que possam manter-se a si mesmos.
Devem conservá-los afastados da ociosidade, e em tudo inculcar neles a
verdadeira fé em Deus, a fim de que, pela falta de confiança ou
demasiada segurança ou pela feia avareza venham a tornar-se dissolutos, e
a fracassar na vida.
Aliás,
é muito certo que as obras praticadas pelos pais com verdadeira fé,
mediante os deveres domésticos e administração de sua casa, são, aos
olhos de Deus, santas e verdadeiramente boas obras. Não são menos
agradáveis a Deus do que as orações, os jejuns e as obras de
beneficência. Pois, assim ensinou o apóstolo em suas epístolas,
especialmente nas dirigidas a Timóteo e a Tito. E com o mesmo apóstolo
incluímos entre os ensinos de demônios a doutrina dos que proíbem o
casamento e abertamente o criticam ou indiretamente o desacreditam, como
se não fosse santo e puro.
Execramos
também, a vida impura dos solteiros, a lascívia secreta ou às claras, e
a fornicação dos hipócritas, que simulam continência, sendo os mais
incontinentes de todos. A todos estes julgará Deus. Não desaprovamos as
riquezas dos que as possuem, quando são piedosos e fazem bom uso delas.
Mas, rejeitamos a seita dos Apostólicos, etc.
30. Da magistratura
A magistratura vem de Deus.
A magistratura em todas as suas formas foi instituída por Deus mesmo
para a paz e a tranqüilidade do gênero humano, devendo pois, ter o lugar
mais importante no mundo. Se o magistrado for inimigo da Igreja poderá
entravar a sua ação e perturbá-la muito; mas sendo amigo ou membro da
Igreja, torna-se o mais útil e excelente entre os seus membros, podendo
ajudá-la muito e dar-lhe assistência melhor do que todos os demais.
O dever do magistrado.
O principal dever do magistrado é garantir e preservar a paz e a
tranqüilidade pública. Indubitavelmente, ele nunca realizará isso com
tanto sucesso como quando é de fato temente a Deus e religioso. Quer
isso dizer, quando segundo o exemplo dos mais santos reis e príncipes do
povo do Senhor, promove o magistrado a pregação da verdade e a fé
sincera, extirpa as mentiras e toda a superstição, juntamente com toda
impiedade e idolatria e defende a Igreja de Deus. Certamente, ensinamos
que o cuidado da religião pertence especialmente ao santo magistrado.
Tenha
ele, pois, em suas mãos a Palavra de Deus, tomando cuidado de que não
se ensine nada contrário à mesma. Governe também o povo, que lhe foi
confiado por Deus, por meio de boas leis, elaboradas segundo a Palavra
de Deus, conservando-o na disciplina, no dever e na obediência. Exerça o
seu ofício de magistrado, julgando com justiça. Não faça acepção de
pessoas, nem aceite subornos. Proteja as viúvas, os órfãos e os aflitos.
Use sua autoridade para punir os criminosos e até bani-los, bem como
aos impostores e bárbaros. Pois, não é sem motivo que ele traz a espada.
(Rom 13.4).
Portanto,
desembainhe a espada de Deus contra todos os malfeitores, sediciosos,
ladrões, homicidas, opressores, blasfemadores, perjuros, e contra todos
aqueles, a quem Deus lhe ordenou punir e mesmo executar. Reprima os
hereges incorrigíveis (verdadeiramente heréticos), que não cessam de
blasfemar contra a majestade de Deus, e de perturbar e mesmo pôr em
perigo a Igreja de Deus.
Guerra.
E, se for necessário preservar pela guerra a segurança do povo, que o
magistrado declare guerra em nome de Deus, desde que tenha primeiramente
procurado por todos os meios possíveis fazer a paz, não podendo pois,
salvar seu povo a não ser pela guerra. Quando, pela fé pratica o
magistrado estas coisas, serve a Deus por aquelas obras, que são
verdadeiramente boas, e recebe a bênção do Senhor.
Condenamos
os Anabaptistas que, ao negarem possa o cristão exercer o ofício de
magistrado, negam também que o homem possa ser, com justiça, condenado à
morte pelo magistrado, ou que este possa declarar guerra, ou que se
prestem juramentos ao magistrado, e coisas semelhantes.
O dever dos súditos.
Como Deus efetua a segurança do povo através do magistrado, a quem deu
ao mundo para ser como uma espécie de pai, assim ordena a todos os
súbditos que reconheçam este favor de Deus no magistrado. Que os
súditos, pois, honrem e respeitem o magistrado como ministro de Deus;
que o estimem, colaborem com ele, orem por ele como por um pai, e
obedeçam às suas decisões justas e legítimas. Finalmente, paguem fiel e
prontamente todos os impostos e taxas e todos os demais direitos. E se a
segurança pública do país e a justiça o exigirem, e vir-se o magistrado
obrigado a empreender uma guerra, dêem até suas vidas e derramem o seu
sangue pela segurança pública e pela do magistrado. E o façam em nome de
Deus, espontaneamente, com bravura e alegria. Pois, quem se opõe ao
magistrado provoca contra si mesmo a severa ira de Deus.
Seitas e sedições.
Condenamos, portanto, todos quantos desprezam o magistrado - os
rebeldes, os inimigos do estado, os vilões sediciosos, enfim, todos os
que aberta ou astuciosamente se recusam a cumprir qualquer das
obrigações, que lhes competem. Oramos a Deus, nosso mui misericordioso
Pai do Céu, para que abençoe os governantes, a nós e a todo o seu povo,
mediante Jesus Cristo, nosso único Senhor e Salvador, a quem seja o
louvor e a glória, e as ações de graças, para todo o sempre. Amém.
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