Introdução à História da
Teologia Ortodoxa
Battista MONDIN:
s
estudiosos não estão de acordo sobre a divisão da história da teologia
ortodoxa. Segundo Jugie, não existem na teologia oriental escolas
teológicas e sistemas que possam oferecer um "fundamentum divisionis" 1.
Segundo outros estudiosos, ao contrário, há razões de tempo, lugar e
outros gêneros que justificam sua divisão em dois ou mais períodos.
Também somos dessa opinião, parecendo-nos justo dividir toda a história
bi-milenar da teologia oriental em sete grandes períodos:
- Período patrístico;
- Era de Justiniano;
- Período de Fócio e Cerulário;
- Período de Gregório Palamas;
- Período da Diáspora depois da ocupação turca;
- Escola de Kiev;
- Renascimento moderno.
1. Período Patrístico (Séculos I-VI)
O primeiro período da teologia oriental
coincide com o da teologia ocidental: é o período patrístico. Nessa
época, as Igrejas do Oriente e do Ocidente ainda estão unidas, dando
origem a um patrimônio teológico único, para cuja formação contribuem
tanto os Padres latinos (Tertuliano, Cipriano, Agostinho, Hilário,
Ambrósio, etc.) como os gregos (Orígenes, Clemente, Basílio, Gregório
Nazianzeno e de Nissa, João Crisóstomo etc.).
Durante essa primeira fase da história da
ciência sagrada, as principais características da reflexão teológica são
as mesmas tanto no Oriente como no Ocidente. Ela tem caráter bíblico
(inspira-se diretamente nos textos sacros), apofático (coloca
preferencialmente a ênfase na incognoscibilidade e na inefabilidade de
Deus e dos seus mistérios), assistemático (estuda os problemas que são
impostos pelas circunstâncias, não se preocupando em abordá-los
ordenadamente em seu conjunto) e platônico (adota como instrumento
conceptual a filo de Platão, aplicando à divisão entre mundo natural e
mundo sobrenatural a ruptura que Platão coloca entre mundo sensível e
mundo inteligível).
Essas características permanecem constantes
em toda a história da teologia oriental e com o tempo tendem a se
acentuar em favor do misticismo e do intuicionismo. Já na teologia
latina, depois da época patrística, essas características se eclipsam
pouco a pouco, cedendo lugar a características contrárias: menor contato
com a fonte bíblica, preocupação catafática e sistemática,
aristotelismo como instrumento conceptual. Daí ter ocorrido um
progressivo afastamento entre as teologias oriental e ocidental durante a
Idade Média e a Época Moderna, um afastamento destinado a se aprofundar
em virtude do cisma, até estender-se não só à forma, mas também ao
conteúdo da reflexão teológica.
"Os primeiros cinco séculos constituem a
idade de ouro dos grandes Mestres, Padres e Doutores da Igreja, que
transmitem às futuras gerações a herança da Paradosis, já formada em
suas grandes linhas"2. Os nomes inesquecíveis daqueles que mais
contribuíram para a formação da teologia oriental são: Justino,
Clemente, Orígenes, Atanásio, Cirilo, Basílio, Gregório Nazianzeno,
Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Nestório, o Pseudo-Dionísio.
II. A Era de Justiniano (Séculos VI-VIII)
Na era de Justiniano (527-565), os teólogos empenham-se na luta contra dois excessos: o monofisismo e o nestorianismo.
A figura mais ilustre desse período é João
Damasceno (+ 749), que supera a controvérsia através da explicitação dos
conceitos de natureza e hipóstase. Sua principal obra é o De Fide
Orthodoxa, uma grandiosa síntese da Tradição. Ela "encerra a era
patrística e abre a época das cadeias enciclopédicas, em que a criação é
substituída pelas citações e pelas justificações baseadas no consensus
patrum" 3.
Outro teólogo de primeira grandeza foi
Máximo, o Confessor (+ 638), que em suas viagens e seus contatos em
Jerusalém e Roma, sobretudo com o papa Martinho I, combateu tanto o
monofisismo como o monotelismo. O seu Florilegium revela visivelmente a
influência do Pseudo-Dionísio e da filo neoplatônica, na qual são Máximo
vê "o meio técnico mais apropriado para exprimir a ortodoxia" 4.
Durante a época justiniana foi que nasceu a
famosa controvérsia do Filioqüe. Falando da processão do Espírito Santo,
o III Concílio de Nicéia (787) utilizara a fórmula "ex patre per
filium". Essa fórmula não foi recebida favoravelmente pelos teólogos
ocidentais (por exemplo: Alcuíno) que nela viam ambigüidade e o perigo
de que o Espírito Santo fosse considerado uma criatura. Daí a áspera e
longa disputa, que, como é sabido, foi uma das principais causas da
separação entre as Igrejas de Constantinopla e de Roma.
III. Período de Fócio e Cerulário (Séculos IX-XIII)
Fócio é geralmente recordado por sua
participação no cisma do Oriente. Mas freqüentemente são ignorados os
seus méritos no campo teológico, muito embora tenha sido o maior cultor
da ciência sagrada em seu tempo.
O elemento que mais distingue a sua
especulação teológica é o lugar absolutamente novo que nela ocupa a filo
aristotélica. Ele utiliza a lógica do Estagirita com grande habilidade
para defender a validade do "per Filium". Geralmente, interpreta a
Sagrada Escritura em sentido histórico e literal. Tem grande estima
pelos Padres da Igreja (menos os latinos e João Damasceno), vendo neles
os autênticos intérpretes do Evangelho. Antes da separação da Igreja
latina (867), "não ensinou nada em contrário à fé da Igreja de Roma,
mesmo ressaltando algumas diferenças nos usos litúrgicos e
disciplinares. Então, Fócio admitia claramente o primado de Pedro"5. A
ruptura com Roma foi de breve duração, devendo-se mais a razões
disciplinares do que dogmáticas.
No século X, a cena teológica é dominada pela
figura de são Simeão, chamado o "Novo Teólogo". Segundo Vladimir
Lossky, ele merece amplamente tal título, porque foi ele quem impôs um
novo rumo à teologia bizantina. Com efeito, ela, que antes tinha uma
orientação essencialmente "cristológica", passa a assumir uma orientação
predominantemente" pneumatológica": "Os problemas relativos ao Espírito
Santo e à graça são agora o núcleo central em torno do qual gravita o
pensamento teológico" 6.
Nesse meio tempo, tornavam-se sempre mais
tênues as relações de Constantinopla com Roma, em virtude das péssimas
condições políticas em que se encontrava o Ocidente naquela época por
causa das invasões dos húngaros, normandos e árabes. Por isso, quando
Miguel Cerulário anatematiza o papa de Roma, em 1054, mais do que criar
uma situação nova, ele está apenas selando o estado de fato de uma
separação que já perdurava há alguns séculos. O exemplo de Bizâncio foi
depois seguido pouco a pouco por todas as igrejas de rito bizantino.
Como Fócio, Cerulário também foi um dos
maiores teólogos de seu tempo, tendo contribuído com seus escritos para
escavar um fosso ainda mais profundo com a Igreja latina. Em duas
cartas, Epistula ad Petrum Antiochenum e Epistula Leonis Achridensis,
bem como nos Panoplia, acusa os latinos de se terem afastado da Tradição
apostólica nos seguintes pontos: os ázimos, o jejum do sábado, a
abstinência, o rito do batismo, o culto das imagens, o filioqüe e o
primado romano.
Outro grande teólogo desse período foi Miguel
Psellos (+ 1078), poeta, historiador e filósofo, além de teólogo. Como
Fócio, utiliza tanto a filo platônica como a aristotélica. Entre as suas
doutrinas, as mais dignas de nota são: a processão "ex patre tantum",
uma certa substância material nos anjos, a santidade da Mãe de Deus no
momento de sua concepção, a sua função medianeira.
Psellos teve inúmeros discípulos de valor, entre os quais João Ítalo (+ 1084) e Teofilato, prelado da Bulgária (+ 1108).
No século XIII, a teologia bizantina se
polarizou em torno do Concílio de Lião (1274), que se propunha a
restabelecer a união entre Constantinopla e Roma. Mas os esforços
daqueles que procuravam dissipar as razões do conflito não tiveram
êxito. Os resultados positivos do Concílio não foram bem acolhidos pelos
monges e pelo povo e o cisma continuou.
IV. O Período de Gregório Palamas (Seculos XIV-XV)
Por volta do fim da Idade Média, a teologia
ortodoxa é dominada pela figura de Gregório Palamas (+ 1359). Escritor
muito fecundo e original, Palamas efetuou uma síntese do pensamento
patrístico na teologia da Glória de Deus. Suas teses mais
características são três:
a) O homem não pode conhecer a essência de Deus transcendente;
b) Pode, porém, conhecer suas ações, suas operações, seus atributos;
c) Portanto, em Deus deve haver uma distinção real entre essência incognoscível e atributos cognoscíveis.
Em 1351, a doutrina palamita foi canonizada pelo Sínodo de Constantinopla como a expressão mais autêntica da fé ortodoxa.
Gregório Palamas teve numerosos discípulos,
entre os quais Nilo Cabasilas (+ 1363), sucessor de seu mestre na
cadeira de Tessalônica e autor, entre outras coisas, de Regula
Theologica, De Causis Dissentionum in Ecclesia e De Papae Imperio, e
Filóteo Coccinus (+ 1376), primeiro abade do monte Athos e mais tarde
patriarca de Constantinopla, autor de um Encomium sobre Gregório
Palamas.
Mas, Palamas também teve muitos adversários.
Os mais dignos de nota são: Nicéforo Gregoras (+ 1360), que escreveu
Onze Orações contra Gregório Palamas, e Prócoro Cydones (+ 1368), cujo
nome está ligado sobretudo às traduções em grego de santo Agostinho e
são Tomás. Do Aquinense, ele traduziu parte da Summa Theologiae e toda a
Summa Contra Gentes.
Durante esse período, nasceu a controvérsia
em torno da Epíclese (a oração que se dirige ao Pai depois da
consagração, para que ele mande o Espírito Santo para transformar os
dons divinos do pão e do vinho no corpo e no sangue do Salvador). A
historiografia recente pôde estabelecer que a fórmula "ea transmutans"
foi introduzida na liturgia ortodoxa somente no século XV. De qualquer
modo, a Epíclese torna-se um novo motivo de discórdia com os latinos.
Com efeito, enquanto estes afirmavam que a consagração ocorre no momento
em que se repete as palavras de Cristo "este é o meu corpo" e "este é o
meu sangue", os ortodoxos sustentavam que, além dessas palavras, é
preciso também a Epíclese, ou então que a Epíclese basta por si só.
V. A Teologia da Diáspora (Séculos XVI-VII)
Em 1453, quando os turcos ocuparam
Constantinopla, a teologia ortodoxa recebeu um golpe mortal: as escolas
teológicas fechadas, muitas bibliotecas foram destruídas, muitos
teólogos exilados.
Foi então que se constituiu a teologia
ortodoxa da Diáspora. Essa teologia é marcada pelos sinais do ambiente
em que se desenvolve: denota influência do catolicismo quando se
desenvolve em países católicos e mostra influência do protestantismo
quando se desenvolve em países protestantes.
No início, obviamente, é mais forte a
influência católica (dado que os protestantes nasceriam somente no
século XVI), mas depois a influência protestante também adquire um
considerável peso.
Dentre os teólogos influenciados pelo
catolicismo, podemos recordar Melésio Figas, um cretense que realizou
seus estudos na Universidade de Pavia. Em 1590, foi nomeado patriarca de
Alexandria. A formação católica não o impediu de protestar
energicamente quando, em 1595, os ucranianos subscreveram a reunião com
Roma. Então, escreveu um ensaio intitulado Sobre o Primado do Papa, em
que conclamava os ucranianos a desfazerem o acordo com Roma. Em seu
escrito, Figas repete sem grande originalidade os argumentos
tradicionais dos ortodoxos contra o primado romano e contra os pretensos
erros dos latinos.
Seguindo o exemplo de Figas, um outro teólogo, Máximo de Peloponeso, elaborou um Enchiridion Contra o Cisma dos Papistas.
Entre os teólogos mais sensíveis à influência
protestante, podemos recordar Cirilo Lucaris (+ 1638), fervoroso
promotor do calvinismo na Grécia. Em 1629, publicou em Genebra o seu
Orientalis Ecclesiae Confessionem Christianae Fidei, uma obra
profundamente impregnada de calvinismo. O Sínodo de Constantinopla de
1638 condenou as suas doutrinas.
Os desvios "catolicizantes" e
"protestantizantes" não tardaram em provocar a reação de diversos
teólogos, que, preocupados em salvaguardar a integridade da fé ortodoxa,
marcaram seus escritos por uma forma fortemente polêmica.
Entre os polemistas ortodoxos, podemos
ressaltar Melésio Syrigos (+ 1667), cuja maior obra é intitulada
Confutação Ortodoxa dos Capítulos e das Questões da Confissão de Cirilo
Lukaris, e Dositeu, patriarca de Jerusalém (+ 1707), autor do
Enchiridion Contra os Erros de Calvino.
VI. A Escola de Kiev (Séculos XVII-XVIII)
Enquanto a teologia da Diáspora se apagava
lenta e fatalmente, o primeiro lugar no mundo da cultura ortodoxa
passava para a Rússia, único país da Ortodoxia que conseguira furtar-se
ao domínio turco. No século XVII, a Rússia torna-se o centro de
gravidade da ortodoxia, sobretudo graças à escola de Kiev.
Esta fora fundada por Pedro Moghila (+ 1647),
que a estruturara pelo modelo das universidades dos jesuítas: língua
latina e método escolástico. O seu texto oficial, A Confissão Ortodoxa
da Fé, era calcado no esquema do catecismo de Pedro Canísio. E mesmo na
liturgia freqüentemente eram imitadas as práticas católicas 7.
A obra-prima de Moghila, A Confissão Ortodoxa
da Fé, muito embora refletisse uma clara romanização da ortodoxia,
gozou de elevadíssimo prestígio durante uns dois séculos. Sobre ela o
patriarca de Moscou, Adriano (+ 1700), escreveu: "O reverendíssimo
metropolita Pedro, dito Moghila, homem de grande inteligência e vasta
erudição, elaborou esse livro inspirado por Deus... Tudo aquilo que
corresponde ao juízo desse livro é indubitavelmente ortodoxo. Já aquilo
que não concorda com ele, mas está em conflito, não faz parte da
doutrina da nossa Igreja e, portanto, não merece ser escutado" 8.
Durante todo o século XVIII, A Confissão foi
classificada entre os Livros Simbólicos da Igreja Ortodoxa, sendo-lhe
atribuída a mesma autoridade dos decretos dos primeiros concílios.
A escola de Kiev produziu numerosos teólogos, entre os quais Lasar Baranovich (+ 1693) e Antônio Radivilovski (+ 1688).
VII. O Renascimento Moderno (Séculos XIX-XX)
Nos séculos XIX e XX, a teologia ortodoxa se
renova sobretudo em duas nações, Grécia e Rússia. Neste último país, nem
mesmo a revolução bolchevique, com todas as suas dolorosas
conseqüências para a Igreja, conseguiu impedir o grande florescimento
teológico em curso no início do nosso século, ainda que tenha obrigado
quase todos os mais insignes cultores da ciência sagrada a buscarem
refúgio no exterior, pois eles reconstituíram em Paris e Nova York dois
centros de teologia ortodoxa dotados de uma prodigiosa vitalidade.
Podemos dividir a história contemporânea da
teologia ortodoxa em três partes: russa, grega e da Diáspora. Vamos
examiná-las uma por uma, começando pela russa.
1. O renascimento russo
No início do século XIX, o epicentro da
teologia ortodoxa desloca-se de Kiev para Moscou. A faculdade de
teologia da capital começa a ascender durante o patriarcado de Filarete
Drozdov (+ 1867).
As principais causas do renascimento foram
duas: um maior contato com as fontes bíblicas e patrísticas (em 1812,
foi fundada a Sociedade Bíblica Russa) e a introdução da língua russa em
lugar do latim. Com o desaparecimento do latim, decai também a
influência escolástica.
Os maiores artífices da renovação antes da Revolução Russa foram quatro: o metropolita Macário, Khomiakov, Svetlov e Soloviev.
O metropolita Macário (o seu nome de
nascimento era Mikhail Petrovic Bulgakov) é o autor de uma famosa
História da Igreja Russa em doze volumes e de uma Teologia Dogmática
Ortodoxa, sendo que esta última chegou a ser premiada pela Academia de
Ciências de Moscou. Ela é considerada por N. Glubokovski, um historiador
da teologia russa, como "uma grandiosa tentativa de classificação
científica do material teológico acumulado no passado" 9. A obra foi
adotada não só como manual para a formação de padres ortodoxos na
Rússia, mas também como critério de ortodoxia. Com efeito, as posições
de Macário correspondiam exatamente às do Santo Sínodo de Moscou no
rígido conservadorismo, na interpretação literal da Escritura, no tom
apologético e numa forte intolerância para com as outras confissões. Por
esse motivo, além da escassa originalidade da obra, os teólogos russos
deste século julgam-na bem menos favoravelmente do que seus colegas do
século passado 10.
Enquanto o metropolita Macário é o expoente
máximo da teologia "oficial", Alexis Khomiakov (+ 1860) é o teólogo mais
representativo do movimento eslavófilo. Esse movimento nasceu como
reação contra a ocidentalização da intelectualidade. Para combater esta
ocidentalização os "eslavófilos" recorriam ao velho mito do messianismo
russo e ao pan-eslavismo religioso, rujas raízes haviam penetrado na
consciência nacional desde os tempos dos grandes tzares do século XVI.
Teórico e teólogo do "eslavofilismo",
Khomiakov afirma que a antropologia, a sociologia e a teologia orientais
estão separadas do "racionalismo cristão" do Ocidente por uma oposição
radical. Contra o caráter jurídico dos latinos, exalta a Sobornost'
eslava. A nova eclesiologia de que ele é fundador baseia-se toda na
idéia da comunidade unânime de todos os fiéis, isto é, a Sobornost'. Em
sua opinião, é nela que residem a unidade e a infalibilidade da Igreja.
Conseqüentemente, não pode haver nenhuma diferença essencial entre
Igreja docente e Igreja discente, entre hierarquia e povo: toda decisão
da hierarquia, para tornar-se autorizada e infalível, deve ser aceita
por todo o povo. Assim, segundo Khomiakov, viria a realizar-se na Igreja
Ortodoxa aquela perfeita harmonia entre liberdade e união que não seria
possível no catolicismo nem no protestantismo; no primeiro, porque a
união suprime a liberdade; no segundo, porque a liberdade suprime a
união. No século passado, essas teorias de Khomiakov foram duramente
criticadas e condenadas pela hierarquia ortodoxa e seu autor foi
asperamente censurado. A publicação de suas obras só foi autorizada
vinte anos depois de sua morte. Hoje, porém, a teologia de Khomiakov é
muito difundida entre os teólogos ortodoxos.
Pavel I. Svetlov (+ 1942) foi quem mais
contribuiu para consolidar e difundir as doutrinas de Khomiakov. Suas
obras mais importantes são: A Doutrina Cristã Apresentada em Forma
Apologética e A Idéia do Reino de Deus no seu Significado Relativo à
Concepção Cristã do Mundo. Ele assume uma posição conciliatória nos
pontos controversos entre ortodoxos e latinos, como por exemplo na
questão da processão do Espírito, em que ele não encontra nenhuma
diferença substancial entre as doutrinas grega e latina, e na questão da
Imaculada Conceição. Svetlov critica particularmente os teólogos
ortodoxos que consideram que as confissões não-ortodoxas não pertencem à
Igreja de Cristo. Contra essa tese, afirma que "as Igrejas Oriental e
Ocidental não são dois corpos completamente separados um do outro e
mutuamente estranhos, mas simplesmente partes do único e verdadeiro
Corpo de Cristo: a Igreja universal; ambas as comunidades cristãs estão
da mesma forma unidas a Cristo através da sucessão apostólica, da
verdadeira fé e dos sacramentos. Portanto, em conseqüência da aparente
divisão, a Igreja universal parece subsistir em dois corpos, enquanto
que de fato é uma só. O obstáculo à sua reunião é constituído pela idéia
errada, profundamente radicada em ambas as partes da cristandade, de
que depois da divisão só uma parte se identifique com o todo, com a
Igreja universal... As diferenças entre as duas Igrejas não são de
substância, mas foram aumentadas pela inimizade e pela polêmica;
freqüentemente, são apenas aparentes" 11.
Soloviev (+ 1900), além de grande filósofo,
foi um dos mais válidos representantes do renascimento teológico
ortodoxo. Sua obra mais importante são as Lições sobre a
Divino-humanidade, um profundo ensaio cristológico no qual a Encarnação é
concebida como um evento que tem lugar no próprio coração do ser, sendo
o seu evento interior, e depois, por extensão, se amplia a tudo o que é
humano, colocando a história sob o signo da "cristificação" universal.
De tal modo, o Cristo-Deus-Homem se cumpre no Cristo-Deus-Humanidade. Em
harmonia com esse "teandrismo", Soloviev elaborou uma "sofiologia" que,
através das malhas do idealismo alemão e de um misticismo por vezes
equívoco, tenta reler as afirmações da Bíblia e de Orígenes sobre a
Sabedoria, que ele vê sair da Trindade para criar o mundo, divinizá-lo e
reintegrá-lo em sua fonte. Florensky e Bulgakov retomariam depois por
sua conta os elementos essenciais dessa teoria, esforçando-se por
libertá-la dos seus elementos cabalísticos e gnósticos.
2. Teologia ortodoxa da segunda diáspora
A Revolução Bolchevique eclodiu no momento em
que a teologia russa estava para atingir o ápice, por obra de Bulgakov,
Florovsky, Lossky, Berdiaev, Zernov e outros. O triunfo do comunismo
obrigou todos esses jovens a abandonarem a Rússia, passando a residir em
nações ocidentais, na Tchecoslováquia, França, Inglaterra e Estados
Unidos. Mas sua dispersão não marcou o fim da teologia ortodoxa russa.
Superando enormes dificuldades, eles se reorganizaram e, em Paris e Nova
York, fundaram dois centros de estudos teológicos, o Instituto de São
Sérgio e o Seminário de São Vladimir, que não tardaram a conquistar fama
internacional. Ao instituto de Paris ligaram seus nomes Bulgakov,
Lossky, Afanassieff, Florensky e Evdokimov. Ao seminário de Nova York
emprestaram o prestígio de sua obra Florovsky, Schmemann e Meyendorff.
Berdiaev e Zernov, porém, permaneceram isolados, desenvolvendo suas atividades fora daquelas instituições.
Mais adiante, em três capítulos diferentes,
trataremos amplamente dos três expoentes máximos da teologia russa da
Diáspora, Lossky, Bulgakov e Florovsky. Aqui, nos limitaremos a examinar
brevemente as outras duas maiores figuras, Berdiaev e Zernov.
Nikolai Berdiaev (+ 1948) é o mais célebre
dos convertidos russos deste século: passou do positivismo e do ateísmo
da intelectualidade à fé ortodoxa dos seus pais. Com sua forte
personalidade e com suas obras originais, contribuiu mais do que
qualquer outro para o conhecimento do pensamento religioso russo além
das fronteiras de sua pátria e em ambientes habitualmente fechados à
religião. Durante o exílio, tomou parte ativa na vida da Igreja
Ortodoxa. Participou também das conferências do Movimento Ecumênico, mas
fazendo questão de frisar que não era representante oficial de sua
Igreja, porque queria conservar o direito de julgar e criticar a ação
dos seus chefes desde o ponto de vista de um pensador independente.
Quanto ao seu pensamento, uma das características que o distinguem é a
desconfiança em relação à razão, tanto em filo como em teologia. Segundo
Berdiaev, a razão despreza o aspecto misterioso da vida e do universo.
"O mistério", afirma ele, "permanece sempre, sendo inclusive acentuado
pelo conhecimento. Este, com efeito, só resolve os falsos mistérios,
criados pela ignorância. Mas existem outros mistérios que se nos
apresentam quando alcançamos o fundo do conhecimento. Deus é um mistério
e o conhecimento de Deus é comunicado no mistério (teologia" apofática"
). A teologia racional é uma falsa teologia, porque nega os mistérios
que envolvem Deus" 12.
Nikolai Zernov (nascido em 1898) deixou a
Rússia logo depois da Revolução. Inicialmente, se estabeleceu na
Iugoslávia, onde foi laureado em teologia em 1925. Depois passou para a
Universidade de Oxford, onde, depois de se ter doutorado em filo, foi
nomeado professor de cultura ortodoxa em 1947. Escreveu muitas obras de
caráter histórico e eclesiológico, com as quais contribuiu bastante para
o conhecimento da teologia russa no mundo anglo-saxão. Entre as suas
obras em inglês, podemos recordar: The Church of the Eastern Christians
(Londres, 1942); The Russians and their Church (idem, 1945); The
Reintegration of lhe Church (idem, 1952) e Easterns Christendom (idem,
1962).
3. O renascimento grego
O ponto de partida do renascimento da
teologia ortodoxa na Grécia foi a fundação da Universidade de Atenas,
poucos anos depois da expulsão dos turcos. A Faculdade de Teologia
ocupava o lugar de honra entre as quatro faculdades com que teve início a
nova universidade. Num primeiro momento, a principal função da
faculdade foi a formação do clero e dos mestres de religião no novo
Estado. Em seguida, contudo, passou-se a cuidar sempre mais da pesquisa
científica. Essa orientação favoreceu consideravelmente o despertar da
ciência teológica. Já no século XIX surgiram alguns autores de valor,
como Constantino Kontogonis e Nicola Damalas. Este último é autor de um
livro, Princípios Científicos e Eclesiásticos da Teologia Ortodoxa, que
ainda hoje goza de grande fama.
Mas foi sobretudo neste século que a Grécia
produziu uma série respeitável de grandes teólogos. O primeiro de todos
foi Christos Antroutsos (+ 1935), do qual Bratsiotis escreveu: "Em minha
opinião pessoal e interpretando também a opinião de todos os cientistas
imparciais, posso assegurar que nossa escola teológica ainda não viu um
teólogo tão capaz e genial e nunca ouviu um mestre tão metódico e
atraente como ele" 13. Suas inúmeras obras teológicas e a qualidade de
suas monografias, estudos e discursos científicos constituem a
demonstração mais eloqüente da fecundidade de seu gênio. No Simbolismo
do Ponto de Vista Ortodoxo, uma de suas obras mais originais, através de
um penetrante estudo da Sagrada Escritura e dos Padres, ele procura
identificar e descrever as diferenças entre as principais Igrejas e
precisar o pensamento da Igreja Ortodoxa.
Outros teólogos importantes são Amilcas
Alivizatos, Panaghiotis Bratsiotis, Panaghiotis Trembelas, João Karmiris
e Nikos Nissiotis.
Amilcas Alivizatos, além de teólogo, é também
um personagem bem conhecido tanto na Grécia como no resto da Europa.
Ocupou numerosos e variados cargos nos governos do seu país. Teve um
papel determinante na preparação da Carta Constitucional de 1923.
Participou ativamente de muitas assembléias ecumênicas. Suas maiores
obras são: A Continuidade Ininterrupta da Igreja Ortodoxa Grega com a
Igreja Indivisa (1934); Posição Contemporânea da Teologia Ortodoxa (
1931 ); O Culto na Igreja Ortodoxa (1952). Quanto ao pensamento,
"Alivizatos é o descendente espiritual da tradição patrística liberal
dos tempos em que florescia o cristianismo helênico, da Ortodoxia e do
espírito ecumênico da Igreja antiga" 14.
Panaghiotis Bratsiotis é eminente sobretudo
como exegeta. De 1929 a 1960, ocupou a cátedra de Introdução e
Interpretação do Antigo Testamento. Suas principais obras são: O
Judaísmo Palestino na Palestina (192O); João Batista como Profeta
(1921); Estudos sobre os LXX (1926); Introdução ao Antigo Testamento
(1937); Comentário a Isaías (1956).
Panaghiotis Trembelas, talento multiforme e
fecundo não negligenciou nenhum campo do saber teológico, da apologética
à teologia fundamental, da exegese à liturgia, da moral à dogmática.
Neste último campo, sua principal obra é A Dogmática da Igreja Católica
Ortodoxa, em três volumes, publicados entre 1959 e 1961. Nela, o autor
se propõe a dar a conhecer o espírito dos Santos Padres; na realidade,
entre suas qualidades, a sua dogmática tem a qualidade de ser
verdadeiramente patrística. Um mérito de Trembelas foi ter renovado a
exposição da teologia dogmática grega, aprofundada de há muito pelos
trabalhos de Androutsos, os quais, porém, já se encontravam um pouco
ultrapassados.
João Karmiris é um teólogo que se formou no
Ocidente, nas universidades de Berlirh e Bonn, tendo começado a
conquistar fama nos ambientes internacionais com a tradução neo-helênica
da Summa Theologiae de são Tomás de Aquino. São bastante numerosas suas
publicações no campo histórico-dogmático. A sua obra-prima é A Tradição
Histórica e Simbólica da Igreja Católica Ortodoxa, em dois volumes,
publicados respectivamente em 1952 e 1953. Seus estudos "esclareceram a
posição da Igreja Ortodoxa diante das várias tentativas dos Reformadores
e fortaleceram o zelo e a altivez dos ortodoxos" 15.
Nikos A. Nissiotis (nascido em Atenas em
1925) está exercendo considerável influência especialmente nos ambientes
ecumênicos. Atualmente, exerce o cargo de diretor do Instituto
Ecumênico de Bossey (Suíça). Sua atividade teológica inspira-se
constantemente nas exigências de sua função: o estudo dos problemas
ecumênicos mais importantes do momento. Durante e depois do Concílio
Vaticano II, granjeou apreço por suas penetrantes análises dos
documentos conciliares desde o ponto de vista ortodoxo. Sua principal
obra intitula-se O Problema da Fé em Kierkegaard e no Existencialismo
Moderno.
E assim concluímos nossa visão panorâmica da
história da teologia oriental. Breve síntese que, no entanto, não nos
impediu de constatar como essa história é rica e variada. É bem verdade
que ela teve momentos de pausa e declínio, como qualquer outra história,
mas também teve longos períodos de grande esplendor, principalmente o
período patrístico e neopatrístico e, depois, o período moderno e
contemporâneo.
Neste século, a teologia ortodoxa registrou
um reflorescimento semelhante ao das teologias irmãs, a católica e a
protestante. Seus Bulgakov, Berdiaev, Florovsky e Lossky não são menores
do que os nossos Rahner, Congar, Guardini, de Lubac e Chenu.
Esse é um fato bastante prometedor para o
futuro da Cristandade. Faz brotar a esperança de que, por meio do
diálogo entre os grandes teólogos e mediante o confronto de suas
posições, as Igrejas Católica, Protestante e Ortodoxa possam reencontrar
a unidade na fé.
Notas:
* Capítulo 10 da Obra "Os Grandes Teólogos do Século Vinte" -
Vol. 2 - Os Teólogos protestantes e ortodoxos
1. M. JUGIE, Theologia Dogmatica Christianorum
Orientalium ab Ecclesia Cathotica Dissidentium, Paris, 1926-1935, v. 11,
p. 18, nota.
2. P. EVDOKIMOV, L'Ortodossia, Bolonha, 1965, p. 17.
3. Ibid., p. 31.
4. Ibid., p. 19.
5 V. MALANCZUK, "Byzantine Theology, I (to 1500)" em New Catholic Encyclopedia, v. lI, p. 1019.
6 V. LoSSKY, La Teologia Mistica delta Chiesa d'Oriente, Bolonha, 1967, p. 385.
7 G. Florovsky julgou muito severamente a
orientação da escola de Kiev, acusando-a de "compromisso", de
"cripto-catolicismo romano", de "barroquismo teológico". Cf. FLORcOVSKY,
"Westliche Einflüsse in der Russischen Theologie" em Proces-Vetbaux du
ler Congres de Théologie Orthodoxe à Athenes, 29 nov.-6 dez. 1936,
Atenas, 1939, pp. 214-215; Puti Russkovo Bogoslovi;a (em russo), Paris,
1937, pp. 4ss.
8 Citação de J. CHRYSOSTOMUS, "Die Tbeologie der
Russisch-orthodoxen Kirche em Vorabend der Revolution von 1917" em Una
Sanefa, 1968, p. 100.
9 N. GLUBOKOVSKI, Russische Theologische Wissenschaft in lhrer Geschichtlichen
Entwicklung uni lhren Heutigen Zustand, Varsóvia, 1928, p. 4.
10 G. FLOROVSKY mostra-se severo em relação a Macário na obra Os Caminhos da
teologia Russa (em ruSSO). Cf. pp. 222ss.
9 . Os grandes teólogos... . Vol. 2
11 Citação em J. CHRYSOSTOMUS, O.c., pp. 105-106.
12 N. BERDIAEV, Autocoscienza, Esperimento di Autobiografia Filosofica, Paris, 1949, p. 99.
13 Citado por P. DUMONT, "La Teologia Greca Odierna" em Oriente Cristiano,
1966, n. I, pp. 36-37.
14 G. KONIDARIS, citado por P. DUMONT, "La Teologia Greca Odierna" em
Oriente Cristiano, 1967, n. 4, p. 20.
15. Idem, ibidem, n. 4, p. 53.
Obs.: Caixa alta para os nomes dos teólogos, do editor.
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