Quando os ativistas de
Belgrado se dirigiram à sede patriarcal da Igreja Ortodoxa Sérvia em
abril passado, estavam incomodados com relação à proposição de reformas
litúrgicas. As reformas incluíam a instrução dos sacerdotes que deviam
recitar em voz alta algumas orações que até agora se faziam em
silêncio, e que as portas sagradas do iconostásio entre o altar e a
congregação permaneçam abertas durante a celebração da Eucaristia. Uma
foto em um jornal Sérvio mostra uma ativista que segurava em uma mão um
ícone de São Savas, o santo mais importante da Igreja Ortodoxa Sérvia,
enquanto que na outra levantava um cartaz com os seguintes dizeres:
“Mestre: não nos transformes em católicos romanos!” O que motivou esta
sérvio produzir um cartaz de protesto não foi uma disputa doutrinária,
mas sim o temor da invasão de uma cultura percebida como estrangeira.
Aprofundando nos questionamentos, os ativistas poderiam ter argumentado
“os católicos são hereges!”
Entretanto, para muitos
cristãos ortodoxos, esse é um argumento secundário, que aponta o ponto
principal: os católicos romanos e os ortodoxos simplesmente são
diferentes. Para muitos ortodoxos, as supostas heresias de Roma são
inevitáveis pelas diferenças na perspectiva e tradições. Embora se
possam solucionar questões teológicas, o profundo sentido de autoridade
seria um obstáculo muito sério atrás da união. Não obstante, não está
claro quantos católicos pensam da mesma maneira sobre os católicos
ortodoxos. As atitudes católicas provavelmente refletem a típica
aceitação casual da cultura dominante.
Em um documento recente sobre a
natureza da igreja, a Congregação para a Doutrina da Fé reiterou o
ensinamento católico que os ortodoxos pertencem às igrejas verdadeiras,
às quais faltam apenas a comunhão com Roma para que seja completa. O
porta-voz para assuntos exteriores do Patriarcado de Moscou, o
metropolita Kirill de Smolensk, respondeu a este documento declarando:
“nos ajuda ver quão diferentes somos”. Inclusive quando Roma trata de
ressaltar a relação próxima entre ortodoxos e católicos, seus
correspondentes orientais interpretam estas declarações como sinais de
distância. São católicos e ortodoxos realmente diferentes? Durante meio
século ambos os lados se referiram oficialmente ao outro como “igreja
irmã”. Uma lista de diferenças teológicas é relativamente curta e há
consciência de que a concepção católica sobre a supremacia do Papa é a
principal dificuldade. Sobre as antigas disputas relativas à cláusula
filioque do Credo niceno (“o Espírito Santo procede do Pai e do Filho”)
e os dogmas romanos modernos da Imaculada Conceição e Assunção, ambos
sobre Maria, em geral há acordo entre os teólogos especialistas que são
subespécies de problema das declarações papais.
Ninguém acredita que esta
divisão possa se solucionar completamente no nível teológico. Existem
feridas políticas que também devem sanar, especialmente sobre o que se
vê como proselitismo católico, e especialmente no caso das Igrejas
orientais católicas “uniatas”. Estes problemas políticos e teológicos
são o pão de cada dia dos diálogos ecumênicos oficiais, mas as
profundas diferenças culturais sobre as quais a ativista sérvia
protestava são muito raramente discutidas. Não me refiro a “cultura” em
um sentido étnico, mas sim como uma maneira de descrever o modo de ser
cristão, e tais diferenças são mais profundas no que se refere à
cultural eclesial. As culturas eclesiais desenvolvem idéias teológicas
distintivas, mas estes aspectos teológicos não só são pensados, também
são vividos profundamente no nível da prática e devoção populares.
Há uma tendência a
subvalorizar os temas da cultura eclesial. Talvez isto não seja
surpreendente, já que encontrar um terreno teórico comum que seja
defensável intelectualmente, pode ser mais fácil na prática que ajudar a
centenas de milhões de fiéis a receber esta resolução.
Diferenças culturais
Podem-se detectar duas
diferenças culturais maiúsculas na maneira que ortodoxos e católicos
vivenciam suas visões sobre o cristianismo. A primeira inclui atitudes
sobre a liturgia, uma área onde as diferenças são surpreendentemente
difíceis de definir, porque vão bastante mais além das diferenças no
rito. Existe um erro comum no sentido que os ortodoxos valorizam mais a
“reverência” que os católicos ocidentais contemporâneos, mas isto não é
necessariamente certo; uma missa de palhaços também é reverente em seu
particular estilo. Não obstante, importa precisamente o que se está
reverenciando. Aproximamos-nos da verdade se dissermos que os ortodoxos
vêem a liturgia como a atividade primária dos cristãos, da qual toda
outra atividade flui. Os católicos, por outro lado, tendem a ver a
liturgia como um dos muitos ofícios cristãos; é importante e
obrigatória, mas é uma entre muitas atividades importantes. Se bem que é
impossível fazer tais declarações sem cair em generalizações massivas,
esta diferença entre as duas tradições é, não obstante, uma fonte de
alienação. Uma maneira como esta diferença cultural se manifesta, pode
ser encontrada na visão de cada tradição sobre as orações privadas e o
ascetismo. Alguém pode legitimamente apresentar o caso de que no
catolicismo romano estes tiveram um processo de privatização
considerável. As igrejas ortodoxas, por outro lado, conservaram
preferencialmente o sentido que o ascetismo é um trabalho comunitário.
Mais de uma vez, sacerdotes ortodoxos, que têm uma mentalidade bastante
ecumênica em outros temas, me disseram que eles estariam contrários a
apoiar uma reunião imediata das igrejas porque acreditam que é uma
falta de respeito em relação à disciplina do jejum de parte dos
católicos. Como, se perguntam, podem dizer à sua gente que jejuem da
meia-noite da noite antes de receber a eucaristia quando poderiam ir a
uma missa católica uma hora depois de ter tomado o café da manhã? Na
raiz desta atitude se encontra o temor de que sem os resguardos
necessários, a ortodoxia sucumbirá aos cantos de sereia do
individualismo ocidental. Católicos de tendência mais conservadora
podem se sentir animados com isto, crendo poder contar com os ortodoxos
como aliados na batalha contra o liberalismo e o secularismo, mas isto
é certo só parcialmente. Muitos conservadores católicos falam de
“ofertar” atos ascéticos para as vítimas de abortos ou algum outro
objetivo digno. É difícil imaginar que um cristão ortodoxo pensasse
desta maneira, e a divisão ortodoxos/católicos é bastante mais complexa
que qualquer conflito interno dentro da Igreja Católica. Para muitos
ortodoxos, o que hoje em dia se chama devoção “tradicional” católica
pode parecer tão estrangeira em algumas formas como as expressões mais
“liberais” da fé.
Outra diferença maior entre
estas culturas eclesiais pode se resumir no princípio da oikonomia,
esta palavra grega deriva para “uso doméstico” ou “administração”, que
com freqüência é usada em relação a temas de ordem da igreja e suas
regulamentações. O conceito não é inteiramente alheio para os
católicos, especialmente aqueles que estão fora da tradição
anglo-germânica mais legalista, mas o princípio de oikonomia regula a
práxis ortodoxa de maneira que para muitos católicos parecerão
surpreendentes, inclusive perturbadoras. Por exemplo, o princípio de
oikonomia pode ser usado em igrejas ortodoxas para responder questões
não apenas relacionadas à igreja, mas também morais. Podemos encontrar
dois exemplos desta prática em controvérsias sobre o casamento após um
divórcio e sobre o uso de métodos contraceptivos artificiais, que a
ortodoxia acomoda dentro de sua visão moral em certas circunstâncias.
Milhões de católicos comuns e correntes se sentiram intimamente
afetados pela insistência de sua igreja na absoluta indissolubilidade
do casamento (portanto, não pode haver sacramento de outro casamento
após o divórcio) e a maldade intrínseca do controle artificial da
natalidade. Desde a perspectiva católica, que ingenuidade pastoral
permitiria uma reunião com uma igreja que (como seguramente se veria),
“admite” o divórcio e a contracepção?
As igrejas ortodoxas,
entretanto, estão perfeitamente conscientes da porcentagem de
solicitações de nulidade outorgados em países ocidentais. Também não
estão tão cegos acerca de quão ignorados são os preceitos da igreja
católica com relação à contracepção. Se os católicos insistissem que
seus ensinamentos são más verazes à mensagem de Cristo, como poderiam
convencer os cristãos ortodoxos comuns e correntes que o processo de
nulidade vigente não é mais que uma versão custosa, lenta e
psicologicamente invasiva de um divórcio eclesiástico? E por que os
sacerdotes ortodoxos arriscariam alienar seus próprios fiéis ao
interferir em assuntos de planejamento familiar?
Viver de acordo ao que se diz crer
Como pode uma igreja chamar a
outros a se unir sobre a base de práticas e crenças que seus próprios
membros tratam com aparente desdém? A pergunta vai em ambos sentidos,
já que a pretendida liberdade e princípio de oikonomia depende da
santidade pessoal dos que determinam os cânones da fé. Onde falham a
santidade e a justiça, tudo o que tanto os fiéis católicos quanto os
ortodoxos vejam, será a sombra do caos e da venalidade. Para que
qualquer dos dois lados apresente uma boa causa para sua própria visão
eclesial, deve viver essa visão, não só argumentá-la. A verdadeira chave
para o progresso ecumênico –a conversão do outro– começa com a
conversão de si mesmo.
A idéia que a conversão
pessoal é a base da empresa ecumênica não é nada nova. Em seu “Decreto
sobre o Ecumenismo”, o Concílio Vaticano Segundo se referiu à
“conversão interior” e à “santidade de vida” como “ecumenismo
espiritual”, chamando de “a alma de todo o movimento ecumênico”. Em A
Handbook of Spiritual Ecumenism [Manual de Ecumenismo Espiritual], o
Cardeal Walter Kasper escreveu: “só no contexto de conversão e
renovação da mente podem se curar as feridas dos laços de comunhão”.
Esta conversão, continua, se pode fomentar dentro das comunidades de
fé: paróquias, grupos de oração, casas religiosas, mosteiros ou
organizações juvenis, onde o vínculo orgânico entre santidade pessoal e
ecumenismo pode ser ensinado e expressado de maneiras práticas. Só nas
bases poderão católicos ou ortodoxos começar esse longo e lento
processo de reaprendizagem sem o qual os mais otimistas anúncios dos
diálogos ecumênicos não terão nenhum resultado.
Eu pertenço a uma Igreja
Oriental unida a Roma e fundamentalmente creio que as visões católica e
ortodoxa são capazes de comunhão mútua. Porém, como católico oriental,
também posso falar com certa autoridade sobre as tensões que se
suscitam quando tratamos de fazer dessa comunhão algo tangível. Em
relação a essas tensões, o grupo católico é excessivamente otimista. A
reação tóxica que os católicos orientais (especialmente na Europa
oriental) com freqüência provocam por sua só existência deveria alertar
a nossos irmãos e irmãs de Roma sobre um sentimento geral entre
ortodoxos de que as diferenças entre nós são muito grandes para que se
resolvam no papel. Qualquer tentativa de fazê-lo pode aparecer como
falta de autenticidade e até falso. Inclusive quando os líderes
ortodoxos tratam de dar conta desta moléstia de formas mais moderadas,
tendem a provocar uma ansiosa perplexidade aos católicos mais
ecumênicos. Um perfeito exemplo disso é a reação negativa que o
Patriarca Ecumênico Bartolomeu I de Constantinopla recebeu na
Universidade de Georgetown em 1997, quando disse de ortodoxos e
católicos: “A forma na qual existimos se transformou em ontologicamente
distinta. Se nossa transfiguração e transformação ontológica rumo a um
modelo de vida comum não se realiza, não só a forma, mas o conteúdo, a
unidade e sua concretização resultam impossíveis”.
Aquela ativista em Belgrado
teria estado plenamente de acordo com o sentido subjacente de que
católicos e ortodoxos são diferentes em coisas fundamentais. É
compreensível que os teólogos ecumênicos e os diplomáticos
eclesiásticos queiram conduzir o ecumenismo pelo caminho que nos une,
mas desafortunadamente, nossas diferenças permanecem. Para curar estas
divisões, em especial as que existem no nível cultural, os teólogos e os
diplomáticos têm um campo de ação limitado. Nós, os ecumenistas
espirituais, fiéis cristãos, devemos fazer o resto.
(Hieromonge Maximos Davies, do Mosteiro da Sagrada Ressurreição, uma comunidade católica oriental da Eparquia São Jorge em Canton, Ohio. Tradução de Rodrigo Virtuoso. Online em: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/fe_crista_ortodoxa/o-que-separa-ortodoxos-e-catolicos.html).
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